E esse “pacote” aí, embrulhado de vermelho, em frente ao Memorial da Democracia, no Sítio da Trindade, o que é? Você sabe? É um busto de Gregório Bezerra (1900 – 1983), que bem que devia ser inaugurado nesse 31 de março. Seria uma forma de homenagear o militante que era chamado pelos companheiros e admiradores de “o homem de ferro e de flor” (por conta da coragem e da resistência, e da delicadeza nos relacionamentos com as pessoas). Líder comunista, Gregório tem história que valia um filme. É que talvez tenha sido o único inimigo da ditadura implantada em 1964, que foi barbaramente torturado em praça pública.
Aconteceu. Ele teve seu pescoço amarrado com uma corda como um animal e foi puxado por um carro, sendo exibido por militares como um troféu, na Praça de Casa Forte, enquanto era torturado pelo Coronel Darcy Vilocq. O fato chocou as alunas do Colégio Sagrada Família, ali localizado. As estudantes assistiram aos maus tratos, que deixaram o militante todo ensanguentado. O fato é relatado nos livros de história e nas memórias do próprio Gregório e também de Paulo Cavalcanti (1915 – 1995), este em “O caso eu conto como o caso foi”. E uma vez, em entrevista a essa repórter aqui, o próprio Darcy confirmou ter “dado em Gregório” e “em outros comunistas, até em uma doutora”. Faz tempo isso, e não lembro se o nome dessa vítima mulher chegou a ser por ele citado.
Após a sessão pública de maus tratos, ele retorna a um quartel do Exército, no mesmo bairro, onde voltaria a ser torturado até com ácido de bateria de carro jogado na sola dos seus pés, e obrigado a caminhar sobre pedras com os pés feridos pelo líquido corrosivo. Gregório teve uma infância trágica. Começou a trabalhar na lavoura aos quatro anos. Aos nove, ficou órfão de pai e mãe. A convite de fazendeiros da região onde residia com a família, veio então para o Recife, já que eles lhe prometiam dar-lhe estudo. Mas a promessa nunca foi cumprida e botaram Gregório para lavar pinicos das patroas, o que o deixava revoltado, segundo revela em sua memórias.
Ele passou, então, a procurar trabalho nas ruas, tendo atuando em profissões que iam de pedreiro a jornaleiro. Aprenderia a ler somente aos 25 anos, quando decidiu se alistar no Exército. Depois seria deputado. Dedicou toda a vida ao engajamento político, o que o levou a passar quase um quarto de século de sua vida atrás das grades. Em 1917, aderiu à Revolução Bolchevique participando de uma passeata, o que lhe rendeu a primeira prisão. Em 1922 foi para o Exército, e em 1930 filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1935, dentro do quartel, participou de levante militar promovido pela Aliança Nacional Libertadora, a Intentona Comunista.
Em 1964, Gregório articulava a reação contra o golpe militar, quando foi preso, torturado em praça pública e quase morto nas masmorras da ditadura. Posteriormente seria exilado, após ser liberado juntamente com 14 outros presos políticos de diversas partes do país, em troca da libertação do então embaixador americano, Charles Burke Elbrik, que fora sequestrado pela militância esquerdista. Gregório morou na União Soviética, voltou ao Brasil com a anistia e retomou sua vida política. No Recife, lembro-me de ter feito a cobertura de um encontro dele com Luís Carlos Prestes e Cristiano Cordeiro. Este era, então, o único sobrevivente do grupo que em 1922 fundara o PCB. O busto de Gregório foi esculpido pelo artista Cavani Rosas, que acha estranho que duas décadas após ter sido confeccionada, a estátua ainda não ter encontrado o seu lugar definitivo.
Mas a escultura, como sua vida, parece ter um longo caminho a percorrer. Encomendada na gestão do então petista João Paulo Lima e Silva como prefeito do Recife (2000/2004 e 2004/2008), o busto confeccionado pelo artista Cavani Rosas tem rodado bastante. Primeiro, seria colocada na Ponte que ganhou o nome do militante político, através de lei 16.773/2002. Como a escultura ficou pronta antes da ponte, passou um tempão embolando nos depósitos do serviço público, até que foi levada para o município de Panelas, onde Gregório nasceu. Voltou da cidade – localizada a 201 quilômetros do Recife – ninguém sabe quando. Até que em 2024, o Prefeito João Campos (PSB) decidiu levar o busto para ficar ao lado das esculturas “Torre Cinética” e “Você me prende vivo e eu escapo morto”, em frente ao Memorial da Democracia, no Sítio da Trindade. O que é uma boa escolha, já que a área histórica é repleta de significados, tendo abrigado inclusive o Movimento de Cultura Popular (MCP), nos anos 60 do século passado. “Ainda está sem placa e nada me falaram a respeito de alguma cerimônia de inauguração”, afirma Cavani.
Abaixo, você confere mais informações sobre 1964, lideranças da época e sobre o Memorial da Democracia.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Letícia Lins e Internet
Matéria excelente, Letícia.
Precisamos lembrar dessa barbárie, para que outras misérias dessas não se repitam.
Ainda outro dia, por pouco escapou nossa Democracia.
Narrativa primorosa sobre a vida e a luta de Gregório Bezerra. Primorosa e ao mesmo tempo impactante. De cortar o coração os maus tratos aos quais ele foi submetido. Sim, concordo com você, Letícia, hoje seria o dia ideal para a escultura ser inaugurada com honras no Sítio Trindade. Não entendo porque o prefeito não providenciou isso. Gregório merece essa escultura e muito mais.
Parabéns, Letícia, pela excelente matéria que denuncia o período sangrento da ditadura. Nunca é demais divulgar o museu da memória localizado no Sítio da Trindade. Vou divulgar com os participantes do meu WhatsApp.
Quanto ao crime cometido contra o brasileiro herói Gregório Bezerra eu sempre defendi que a Praça de Casa Forte deveria ter seu nome. Sugeri a alguns vereadores, porém não encontrei acolhida.
Como sempre seus textos são excepcionais e de uma leitura fácil Letícia! Sem dúvida uma homenagem tardia, mas uma bela homenagem a Gregório Bezzerra que foi um guerreiro na luta pela liberdade e merece ainda mais homenagens como falou Lélia acima! E o lugar não poderia ter sido melhor, o Sítio da Trindade é carregado de simbolismo e já tem o Memorial da Democracia de Pernambuco! Parabéns!!
Memória merecida, contudo, no busto já visível para o público, lá no Sítio da Trindade, há registros de autoridades municipais e até poema de Ferreira Gullar, não há referência ou histórico sobre o homenageado. Quem sabe da história, se não pesquisar, será apenas mais um busto em nossa cidade. Parece-me que é mais importante ocupar a placa com os nomes de quem a fez do que para quem foi feita.
Parabéns pela reportagem
Não sabia que já tiraram a capa. Vou passar lá, Oliveira. Uma amiga minha já havia me falado. OBG pela dica.