É incrível como a história se repete. Há 47 anos, o Recife foi tomado por um pânico tão grande, que parecia um filme de terror. Após a população enfrentar uma enchente do Rio Capibaribe que matou mais de cem pessoas, espalhou-se um boato segundo a qual a Barragem de Tapacurá tinha arrombado. Eu já era repórter na época, e mesmo com sete meses de gravidez, vi na rua uma cidade em pavorosa, com gente correndo em todas as direções, pessoas subindo em postes, motoristas abandonando seus carros na Avenida Conde da Boa Vista, onde deixou de existir mão e contramão. Tinha gente correndo, olhando para trás, temendo uma onda gigante. Foi o caos e a impressão que eu tinha era que vivia em filme de ficção ou suspense.
Na rua onde eu morava, a Silveira Lobo, em Casa Forte, a água tinha chegado à cumeeira das casas, e antes que a água subisse, me refugiei no centro do Recife, na residência da residência de familiares do então marido. Se não, ficaria ilhada e não conseguiria trabalhar. Lembro de vizinhos que foram resgatados nos seus telhados. Vi as águas subirem em 1975, a cidade ficar inundada, e vivenciei o terror provocado pelo boato. Nesse sábado, quatro de julho de 2022 – exatamente oito dias após a tragédia que desabrigou cerca de 10 mil pessoas e matou 128 – boato semelhante tomou outra vez conta da cidade. Hoje, são definidos com outro nome: fake news. Não deu tempo de se repetir o pânico nas mesmas dimensões do século passado, mas na tarde de hoje vi gente passando mal, desesperado pelo que pode estar por vir, diante da boataria que já estava sendo acreditada como se verdade fosse.
São famílias que perderam seus pertences devido ao temporal, pois suas casas foram invadidas pelo Rio Capibaribe. Elas estavam se preparando para retornar às suas casas nesse sábado, depois da retirada da lama do final de semana. E foram surpreendidas pela informação que passou a circular, segundo qual barragens haviam arrombado. Também se dizia que governo abriria comportas de barragens para dar vazão ao excesso de água acumulada. Algumas fake news eram até mais radicais. Diziam que duas barragens haviam arrombado. Na comunidade ribeirinha do Areal, que fica próxima a minha casa, já havia gente tremendo, chorando, com pressão alta, temendo o pior. Fake news? Nem tanto.
Mas como diz o ditado popular, onde ha fumaça há fogo. Então, vamos ficar alertas. A Secretária de Infraestrutura e Recursos Hídricos de Pernambuco, Fernanda Batista, informou que as 14 barragens que abastecem a Região Metropolitana “estão vertendo”, mas que nenhuma arrombou, e que a população será avisada, caso seja preciso abrir as comportas de algumas delas por “medida de segurança”. Claro, pois barragens também arrombam. E, como repórter, já cobri tragédias provocadas por esse tipo de acidente, inclusive em outros estados. Então, todo cuidado é pouco. Melhor abrir as comportas em caso de necessidade, justamente para evitar desastres ainda maiores. Mas a população precisa ser avisada.
A última vez que foi preciso apelar para ação do tipo no Recife foi 2010. Porém, em um esforço de memória, dá para lembrar que, mesmo naquela ocasião, o Capibaribe não atingiu o mesmo nível registrado em 2022. Portanto, quem mora nas regiões ribeirinhas fica naquela incerteza: voltar ou não para casa? Afinal, estão temendo o pior: mais água, invasão de suas residências outra vez, perder o pouco que sobrou. O Governo de Pernambuco emitiu uma nota agora à tarde , pedindo que as pessoas “tenham cuidado com boatos e notícias falsas que estão sendo divulgadas, principalmente, pelas redes sociais”. E acrescenta: “Informações confiáveis e atualizadas sobre as chuvas e os rios estão disponibilizadas nos sites e nas redes sociais do governo”.
De acordo ainda com a nota, “são falsas as notícias sobre possível rompimento dos reservatórios de Goitá e Tapacurá”. Informa, ainda, que informação divulgada anteriormente “trata de respeito à possibilidade de vertimentos do reservatórios, que é um um mecanismo de segurança previsto nos projetos para o adequado funcionamento ”. E acrescenta: “Portanto, não há motivo para pânico”. Difícil, no entanto, é a população não ficar em pânico, porque em pânico ela já está, por tudo que aconteceu. Perda de familiares, das casas, dos objetos, das memórias. Site, no entanto, não é tudo. Tem gente que está sem energia, que perdeu computador, que não tem mais nem celular. E eram justamente essas pessoas que estavam transtornadas hoje,temendo barragens arrombadas ou abertura de comportas. Haja expectativa….
Em 1975, não dava mesmo para confiar mais na palavra oficial. Isso porque como faltava muito água nas torneiras e o Recife era sempre atingido por enchentes a cada inverno, o Governo do Estado dizia em sua propaganda oficial que “enchente só se o recifense deixar as torneiras abertas”. Isso depois da conclusão da barragem de Tapacurá que, segundo a versão oficial, resolveria o problema de abastecimento e reteria as águas do Capibaribe, em caso de inverno rigoroso. Não aconteceu uma coisa, nem outra. Até hoje a população do Recife enfrenta racionamento de água. E em 1975, a chuva não afugentou a população, que confiou na eficiência da obra, que conteria as águas em excesso do Capibaribe. Mas a água vinha com a velocidade de um tsunami e só não cobriu morros e as partes mais altas da cidade. Depois, foi o pânico que se viu. Pouco após a cheia, o boato de que Tapacurá tinha arrombado, deixou a população em pânico. Hoje, o Palácio do Campo das Princesas se apressou em desmentir as fake news. Esperamos, no entanto, que a velocidade com que desmentiu a boataria, seja a mesma para informar a população, caso as comportas das barragens sejam abertas. Porque, a julgar pelas consequências das chuvas, a população parece não ter sido tão bem advertida pelo governo como deveria. Estão aí 128 mortos que não nos deixam mentir.
Cadê as medidas preventivas? Cadê os sistemas de alerta? Cadê a evacução das populações de morros e altos que teriam evitado tantas mortes por soterramento? Cadê as obras estruturadoras? Cadê a moradia digna? Cadê as drenagens nos morros e os muros de contenção? Cadê as sirenes para avisar a aproximação de desastres?
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
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