A tragédia das chuvas e os morros “protegidos” por plásticos: “Olhos cansados de ver o mesmo final””

Por Ana Virgínia Andrade França

Debaixo de onde moro, vejo morros por todos os lados. Alto do Mandu, Córrego do Jenipapo, Córrego do Euclides, Sítio dos Pintos, Córrego da Fortuna, Sítio São Brás. Tudo em volta é Morro. Morro, da palavra barreira muito alta. Que nas chuvas, tem sentido ambivalente, porém todo sentido fica verdadeiro .
Desde que meus olhos o enxergam com consciência, os vejo nos primeiros pingos de chuva, o Morro, serem cobertos por uma lona preta. Não, desculpe-me, não é lona, é plástico, só que denso, enorme. E fico imaginando onde se produz tão grande plástico, de tamanha largura e comprimento. Não sei! Também nunca perguntei. Mas sei que é plástico e de cor preta. O que chamou-me sempre muita atenção. Se desde que apareceu aqui na terra, a cor preta, está associada ao luto, porque exatamente onde estão as pessoas negras, no morro, alto e com perigo da casa deslizar, já as colocaram de luto. Antes é agouro.
Luto, porque não há medidas para impedir a morte que chama todo ano assobiando com as chuvas que vem devagarinho e vai soando mais e mais alto, até levar tudo. Será que é pra chamar a atenção de quem passa, e assim se comprazer de tal aberração estética e lembrar: ah…são as possíveis mortes de todo ano?
Acho que tive outra visão. Ou meus olhos, que estão cansados de presenciar esta peça de teatro anual, ficarem cansados de ver o mesmo final.

E se o plástico for mais barato do que fazer uma drenagem nas barreiras? E se o grupo tão sabido de engenharia do Recife, nem for essas pregas de Odete assim?  Ham.. também pode ser que o plástico, preto, seja renovável, e assim todos os anos as fábricas que o produzem, vão produzir mais. Porque ele racha depois com o sol no verão, ou até antes, no inverno mesmo. Cá imaginando mais, vejo que as mesmas pessoas que produzem esses plásticos enormes, quase cobrem uma cidade, são muito inteligentes. Isso são! E que poderiam fazer um plástico que já fosse a própria barreira embrulhada , bem lacrada, para nunca mais ter perigo de cair e levar nossos vizinhos. Seria até caso de premiação. Já pensou? Eita! Mas já estou me desdizendo. O plástico rasga! Poxa… Não queria ter de pensar no que estou pensando.
O plástico faz todo ano. Rasga fácil. Não embrulha a barreira direito e ainda é muito feio e chama o luto.
Xiiii! E agora? Meu pensar tá ficando estranho, sombrio, nublado. Que sensação diferente me passou. Estava eu sempre enganada. O tal plástico; hã hã, alimenta a indústria de refugo de resto de petróleo, que é matéria velha no mundo, que é um recurso fóssil da natureza, para ela mesma auto controlar-se na gestão das suas profundezas.

Opa! sendo assim….. A prefeitura, todas as que já vi nos meus 56 anos de Recife, Jaboatão e Olinda, sabem muito mais que eu. Claro, como fui inocente…. Talvez tenha ficado um pouco mais inocente, porque vi numa vez só, vou lhe contar: um prefeito chamado João Paulo, nos chamou para decidir onde queríamos colocar os recursos da cidade. Já visse disso? Fiquei gaisa e incrível. Lembro muito bem. Na quadra do colégio de aplicação da UFPE, o cara botou moral. Muita gente votou. E decidiu aplicar o dinheiro nosso nas mãos da prefeitura; na contenção das encostas dos Morros, onde morreu muita gente. Morria até 40 por inverno. Já pensou? E a pessoa perguntava: Morreu de quê? De inverno. Vê que morte mais sem explicação e conforme..
Ele, o prefeito João Paulo, subiu pra cima e pra baixo, com um monte de gente sabida e danada de construir. Parece que ele, JP, havia morado em Morro e sabia ou tinha vivido perigo. Ah! mas foi breve isso. Durou só quatro anos. Depois nos mais quatro pra frente , ele mudou de assunto e nenhum outro prefeito desde lá, se interessou de verdade pela situação. Aqui em Recife, só homem é eleito; ninguém tomou mais de conta, das tais de encostas. E aí volto eu para o plástico infame.

As lonas plásticas colocadas em morros não conseguiram evitar deslizamentos, soterramentos e mortes.

Veja, a cena da peça de teatro anual das cidades: Recife, Olinda e Jaboatão. E são peças sincronizadas, que você tem que ficar olhando nos jornais para não perder nenhum capítulo. Veja, a montagem conta, como já falei; do infame plástico gigante, de um produtor ecodispensável, mais uma barreira alta e meio torta e meio soltando umas areias estranhas. Esse é o cenário. Os personagens: Os moradores do Morro, quase os mesmos todos os anos; atores eternos da mesma peça. muda um ou outro. Mas tem os principais, o das maiores barreiras. Agora vamos a sonoplastia: Chuvas. Chuvas boinhas, refrescantes, dá lavoura e comida, dá bica com direito a banho, dá um sonzinho pra acalentar a noite. Estou errada? Estou! Essa parte de acalentar a noite é pra quem mora longe da barreira. daquela alta que falei acima. Pois bem, a sonoplastia, é o começo da agonia, de quem tá dentro da cena da barreira e também dos espectadores espertos e ligados, que estão embaixo, fora de cena. Alguns, fora porque ainda não sacou a parada que rola e que vou aqui revelar.
O lance da dramaturgia, que nem nosso pernambucano, ilustre Nelson Rodrigues, seria capaz de criar. Quero dizer: Perdeu Nelson! Tem cenário? tem. Tem atores? tem. Tem público? Tem. Tem enredo? Tem.
Tem estrutura dramatúrgica, linha de acontecimentos verossímeis? Tem também, e como tem.
Tem sonoplastia das boas, das que seriam prazenteiras? Tem. Tem iluminação? Hum… mais ou menos. Pois às vezes, ocorre ao dia e às vezes à noite. Mas preferencialmente, de madrugada.
Mas, ocorreu uma coisa nova nestas duas últimas chuvas anunciadas …

Ah! sabe não? Faltou energia! E foi? Pois foi! Faltou valendo. Foi entornar o caldo de chuva, de vento disso, mais acúmulo daquilo. Daqui que a gente joga no rio também.Mais um negócio extratropical,etc.
Como se não já bastasse tanto recurso na peça, chegaram mais esses, pra engrossar mesmo o negócio.
Preste atenção: faltou energia de 12h as 23h, nos Morros, na hora da chuva braba, que vinha chegando e chegando e desanuviou em prantos grossos, que cada pingo que caía, um taco de barro da ladeira descia. E a chuva chorou porque? Porque sabe do fim da cena todos os anos. Mas, desta vez o choro parecia escondido. Não se via a chuva. Só se ouvia um derramamento de água por todo canto. Mas e a peça? Não deu pra ver.
Anoiteceu de dia, até de noite,sem uma vela alumiar. Por fim, neste ano mal agourado,que já conta com queda, seguida de coice, ninguém viu quando e quem iria morrer; digo os atores mesmos..
Nem deu tempo de se agarrar, quem com quem, de puxar um do braço daquele. Foi tudo no breu.
Agora te conto. Sabe o plástico? Me perdoem a repetição. É que ele virou o personagem principal. Eu descobri na noite escura. Veja só; ele desceu com o barro da ladeira, sem espalhar barro pra todo lado; fez o papel 1: saco de lixo. Depois , ele já envolve os mortos. papel 2: papel do IML. Papel 3: Ele já fica uns pedaços por lá,por onde tudo desabou. papel de luto.

E ainda, atuou junto com o personagem novo: a falta de energia, o breu. Abafando a luz na totalidade.
O único personagem que não mudou seu amor pela terra, foi a chuva. Ela vem ainda por aqui nas terras secas do nordeste velho de guerra. E outro personagem, que não mede esforços para morrer e materializar o abandono dos governantes: os moradores dos Morros. Atuaram valendo. Atuam à vera. Né brincadeira não. Fica na casa até o fim. Pois não tem cenário alternativo. Mas, uma coisa me impressionou deveras: sem energia. Ninguém viu! Não assistiu ao jornal, as chamadas: tan tan tan. Foi calada desta vez a peça. Talvez amanhã quando chegar a luz, saia no insta e o povo vai se danar a postar em zap e viralizar.
Ah… mais tem mais, e eu já ia me esquecendo; o prefeito mora perto de tudo que eu vejo. Ele também vê o mesminho que eu. Mas, ela não viu! Quem vai dizer que ele não atuou, não chamou ambulância, CELPE, pra acender luz, o escambau a quatro? quem vai? Ele apagou as imagens em si.

O que os lindos olhos dele não viram, o coração que foi tão bem tratado, tão acariciado para se tornar um homem bom; não sentiu. Amanhã tu comenta no insta, visse! Pra eu chorar este ano também. Me faz esse favor, pra eu ver meus vizinhos serem enterrados . Obrigada pelas condolências. Eita! esqueci de dizer que convidaram pra fazer a luz da peça: Bertholt Brecht, e ele danou blackout, pra ver se ofendia a vista dos governantes, quebrando a tal quarta parede, aquela que tampa a vista deles. Agora eles vão dizer : eu não imaginava isso tudo, as chuvas foram demasiadas. 100mm em um dia, para maio, etc, etc… Agora enrole esse menino prefeito? Amigo do governador nem sei quantas vezes eleito. Que para o povo dos Morros, deu as costas, os dois quiçá, mais nunca reeleitos.

*Ana Virgínia Andrade França é farmacêutica Homeopata e antroposófica. Arte educadora com ampliação em Florais e Aromaterapia. Gestora farmacêutica-empresária. Apoiadora das ODS e desenvolvimento de pessoas. Jaboatonense, de Cavaleiro-PE, uma das áreas mais atingidas pela tragédia das chuvas na Região Metropolitana do Recife

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Genival Paparazzi

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