“Trilhas da Democracia” com o MST

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Fundado em 1984, o MST tornou-se um dos mais importantes movimentos sociais do Brasil, com sua luta contra o latifúndio, em defesa da agricultura familiar, da educação, da agroecologia, chegando a desempenhar papel tão importante quanto o das Ligas Camponesas,que atuou entre as décadas de 1950 e 1960 no meio rural. Com uma diferença: as Ligas agiam sobretudo no meio canavieiro de Pernambuco e estados vizinhos. O MST espalhou-se por todo o Brasil. Guardadas as épocas e a forma de atuação, ambos surgiram em um meio onde ainda hoje, se observa a ausência do estado e o abismo social entre os grandes proprietários rurais e os chamados sem terra.

Como repórter, acompanhei o crescimento do MST,  as marchas históricas em território nacional, as ocupações. E, também, os saques durante os tempos de estiagem no Agreste e no Sertão, quando praticamente não havia rede de proteção social ao camponês da catinga que morria de fome, com a falta de produção em suas lavouras, em meio a uma terra ressecada pelo sol.  Naquela época, as autoridades de segurança dividiam os saques  que pipocavam no Sertão, em dois tipos: os “famélicos” e os “políticos”. Os primeiros eram praticados pelos moradores de sítios e normalmente feitos contra armazéns, depósitos de comida, feiras.

Os segundos eram os liderados por grandes grupos do MST que costumavam desviar caminhões da estrada para a caatinga, onde descarregavam a comida. Lembro de pelo menos dois caminhões desviados: um  cheio de jerimuns e outro com bois. Os jerimuns não foram recuperados. Viraram almoço. Foram consumidos, assados, à beira de um riacho quase seco, ao lado do acampamento.

O de bois mobilizou o Ministério Público e a Polícia Militar e terminou sendo liberado depois de longa negociação,quando os bichos começaram a desmaiar na carreta. Foi em Ouricuri, a 630 quilômetros do Recife, onde passei um mês a trabalho. Era tanta coisa acontecendo, que não tinha como voltar para o Recife. Perdi, portanto, as contas  de ações do MST que cobri, inclusive de ocupações no Agreste, na Mata, no Sertão.  As estratégias das ocupações, muitas vezes, nos lembravam a de uma guerrilha. Mas uma guerrilha do bem, em defesa do acesso à terra para uma multidão de desvalidos. Vi usinas sendo destruídas, assim como casas grandes, com os cálices de cristal jogados ao chão, as louças sofisticadas, os armários de herança secular de famílias tradicionais. Esse quebra-quebra, de uma certa forma, começou a arranhar a imagem do MST.

Porém foi em um desses que revelou-se um outro lado obscuro do patronato açucareiro. Saí de casa para cobrir uma ocupação  de terra com destruição da casa grande do engenho, e voltei com a história de um crime até então misterioso. Mas que foi desvendado na ocupação. Na época, fui obrigada a fazer o que, em jornalismo, chamamos virar a matéria. Porque a história tinha virado mesmo. É que no meio das pessoas sem terra, havia uma mulher que de repente teve uma crise de choro. O motivo: tinha um irmão e um primo que, uns dez anos antes, haviam saído para prestar uma queixa trabalhista contra uma usina da Mata Norte A tal em que estávamos. Mas os dois nunca voltaram para casa. No quebra-quebra, na revirada de gavetas, o que apareceu? Uma foto dos dois desaparecidos, com o corpo crivado de balas. Ou seja, uma prova do crime, com indício forte da autoria, se não material, pelo menos a intelectual.  Parente das duas vítimas, a sem terra teve uma crise de choro, e ficou em estado de choque ao ter a confirmação daquilo que a família sempre suspeitara. A violência, a ação das milícias privadas, mortes a tiros dos militantes do MST são comuns, ainda hoje. Vi muitos militantes tombarem.

Em 2006, quem ficou em estado de choque fui eu. Quando um delegado de polícia me confirmou a morte de Josias Barros Ferreira, militante do MST, vocação para líder e com grande futuro político pela frente. Idealista que só ele, foi alvejado aos 28 anos. Durante as coberturas, ficamos amigos e trocávamos livros. Outros eu o presenteei. Josias tinha uma característica especial. Comandava as ocupações recitando versos. E estes tanto podiam ter sido extraídos de cordel, quanto de textos de Jean Genet (1910-1986). Acompanhei muitos enterros. Muitas mortes provocadas por violência, disputa de terra em brigas por bandeiras de outros movimentos, como foi o caso de Josias.

Outra coisa que me chamava a atenção, era o cuidado com a educação nos acampamentos, onde vi – muitas vezes – crianças tendo aulas de alfabetização com as sílabas escritas na areia, com gravetos, na falta de papel e lápis. Era uma ação comovente, da qual o educador Paulo Freire muito se orgulharia. As ações do MST eram tão intensas, que houve tempo em que o Ministério da Reforma Agrária disputava espaço nos jornais com  o MST, com a assessoria da instituição oficial fazendo as contas para ver quem tinha aparecido mais nos veículos de comunicação a cada dia. O MST ganhava, muitas vezes. Nos três últimos anos, no entanto, o MST – que não tenho acompanhado diretamente – parece ter mudado de estratégia.

Surgiu a belíssima rede de armazéns do campo – que comercializa produtos saudáveis, vindo dos assentamentos (ex-acampamentos transformados em lotes rurais pelo Incra). Na pandemia, os armazéns prestaram um grande serviço a populações famintas, com distribuição de marmitas solidárias. O MST também deflagrou uma ação de reflorestamento no Brasil, com proposta de plantar 1 milhão de árvores. A ação já começou, inclusive em Pernambuco. Também teve início um tipo de ocupação que era restrito às áreas rurais. No Recife, por exemplo, já há imóvel urbano ocupado. A violência e a mudança de perfil das ações do MST são assuntos que entram na pauta do Programa “Trilhas da Democracia”, capitaneado pelo professor Marco Mondaini com o tema “Violência sem fim contra o MST”.  O programa vai ao ar às 22h desse sábado (24/7),  na TV 247.  Os entrevistados são José Severino da Silva (coordenador do Acampamento Nelson Mandela) e Paulo Mansan (Membro da Direção Estadual do MST).

Nos links abaixo, você confere outras informações sobre o programa Trilhas da Democracia, sobre lutas camponesas, MST e agricultura familiar e orgânica. Veja, também, o vídeo sobre o que será discutido no programa.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Foto: Site do MST

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