O Brasil tem muitos heróis anônimos. E também heroínas. Alguns e algumas, no entanto, só ficam nacionalmente – e até internacionalmente – conhecidos, depois que morrem, assassinados por proprietários de terra, garimpeiros, madeireiros, grupos de extermínio. Não é o caso de Pureza Lopes Loyola, que enfrentou ameaças contra a sua vida, mas que sobreviveu, e ficou para para contar a própria história que, aliás, virou filme. Aos 80 anos, tornou-se a única brasileira a receber o prêmio Heróis no Combate ao Tráfico de Pessoas’, que foi criado em 2004. A homenagem foi concedida pelo secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken e aconteceu na semana que passou, em Washington, D.C.
A premiação do Tip Hero consagra Dona Pureza por seus esforços no combate aos trabalhos em condições análogas à escravidão no Brasil, um feito inédito para uma mulher nordestina, preta e pobre. E que se alfabetizou somente aos 40 anos, com o objetivo de ler a Bíblia. A história de Pureza felizmente, ultrapassou os limites da Amazônia, pois ela virou tema de filme, como destacamos acima. Pureza, do diretor Renato Barbieri, foi lançado em 2022, e será exibido às 22h dessa segunda-feira (19/06), na Tela Quente, da TV Globo. O filme conta a saga de uma mãe brasileira que, durante três anos, desafiou fazendeiros e jagunços para resgatar seu filho da escravidão contemporânea na Amazônia brasileira. Vencedor de 30 prêmios nacionais e internacionais, o longa “Pureza” é protagonizado por Dira Paes (foto superior) e grande elenco. Conta, ainda, com a produção de Marcus Ligocki Jr.
A data da exibição do filme no Tela Quente, coincide com a data do retorno de Dona Pureza ao Brasil já laureada, pousando no aeroporto de Guarulhos, onde ficará até as 13h30, quando embarca para Teresina para, então, retornar à sua Bacabal/Maranhão. “A premiação do TIP Hero é a coroação da luta incansável da heroína cabocla em favor dos direitos à Vida, vivida de forma impactante por Dira Paes no filme Pureza, como também fortalece sobremaneira a luta abolicionista no Brasil em todos os campos.”, comenta o cineasta Renato Barbieri. Em 2023, a trajetória de Dona Pureza completa 30 anos. O filme já foi exibido em 20 países. Pureza Lopes Loyola nasceu em Presidente Juscelino, município a 85 km de São Luís. E mudou-se para Bacabal, a 240 km da capital, onde o marido tinha parentes. Com o fim do casamento, a sobrevivência passou a depender da olaria familiar e da venda de tijolos na qual trabalhava com seus cinco filhos. O quinto, Antônio Abel, decidiu tentar a sorte em um garimpo na Amazônia. E sumiu.
Em 1993, depois de meses sem notícias do caçula, Pureza decidiu seguir seu rastro. Com a roupa do corpo e munida de uma bolsa, sua Bíblia e uma foto de Abel, caiu na estrada. Queria encontrá-lo vivo ou morto. Sabia apenas que ele tinha ido ao Pará. Visitou grandes fazendas e descobriu um perverso sistema de aliciamento e escravidão de trabalhadores “contratados” para derrubar grandes extensões de mata nativa a fim de converter a área em pastagem para o gado. De fazenda em fazenda, Pureza conheceu de perto o drama dos peões, tornando-se amiga e confidente dos trabalhadores. Conheceu por dentro o sistema pelo qual os empregadores confiscavam documentos de identidade dos empregados e tornavam-nos totalmente dependentes dos encarregados para obter ferramentas de trabalho, víveres e produtos básicos. Ouviu relatos dramáticos de trabalhadores que poderiam ser mortos se tentassem se rebelar ou fugir.
Com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra – a CPT, Pureza entrou em contato com o Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho no Maranhão, no Pará e em Brasília. Chegou a escrever cartas para três presidentes da República: Fernando Collor, Itamar Franco (o único que lhe respondeu) e Fernando Henrique Cardoso. Até hoje, ela guarda uma cópia de cada uma dessas cartas. Hoje, Abel vive em Bacabal com Pureza e a família. Na busca pelo filho, ela não hesitou em coletar provas sobre trabalhadores em situação análoga à escravidão na Amazônia. Assim, deu impulso decisivo à criação, em 1995, do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que uniu auditores-fiscais do trabalho, policiais federais e procuradores do trabalho para viabilizar o cumprimento da lei e a observância de direitos trabalhistas em todo o território nacional. Entre 1995 e 2021, o Grupo Móvel libertou mais de 62 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão. Em 2018, segundo estimativas da Walk Free Foundation, 369 mil pessoas foram submetidas à escravidão no Brasil. No mesmo ano, segundo a OIT, 40,3 milhões de pessoas foram submetidas à escravidão em todo o mundo. No ano passado, a estimativa da OIT para escravizados no mundo subiu para 50 milhões.
O longa-metragem é um filme com um processo inédito de engajamento social desde sua viabilização, que conta hoje com a participação de mais de 95 organizações nacionais e internacionais atuantes na causa, tais como Comissão Pastoral da Terra – CPT, Ministério Público do Trabalho – MPT, Sistema Justiça do Trabalho e a Anti Slavery International, dentre muitas outras. ‘Pureza’ causa impacto e identificação ao abordar a realidade da mecânica do trabalho escravo. Do aliciamento de trabalhadores feito à base de falsas promessas de “emprego bom” e “salário bom”, esses passando por situações de grande violência física e emocional, apreensão dos documentos, endividamento enganoso, jornadas exaustivas, condições degradantes e até cárcere privado. Como diz Dona Pureza, “para boa parte desses escravizados, o salário é a morte”. Desde o lançamento do filme, em maio de 2022, mais de 100 sessões sociais foram realizadas em diversas capitais e regiões vulneráveis do Brasil profundo com o objetivo de sensibilizar e ampliar a consciência social sobre a trágica e criminosa realidade do trabalho escravo contemporâneo e promover o engajamento para a promoção do trabalho digno no Brasil. Veja o vídeo:
Nos links abaixo, você pode conferir heróis e heroínas de nossa história e também de mulheres que lutaram e lutam pelos seus direitos.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Divulgação / Pureza
Que informações preciosas Letícia, confesso que não a conhecia. Vou assistir. Valeu Letícia