Responda sem pestanejar: Quantas pessoas visitam anualmente a estátua de Padre Cícero, no Ceará, onde fica um dos maiores centros de romaria do Brasil? Agora, mais uma pergunta, para outra resposta ligeira: Quem foi o artista que esculpiu a estátua do Padim que, quando erguida, em1969, só perdia em altura para o Cristo Redentor, do Rio de Janeiro, então a mais alta do país? Estima-se que mais de 2,5 milhões visitem o monumento na cidade de Juazeiro do Norte, a 507 quilômetros de Fortaleza. A segunda resposta você vai encontrar no livro “O Pão e o Sonho – Vida e Obra do Escultor Armando Lacerda”, que o escritor Carlos Newton Júnior está lançado na quarta-feira (13/11), a partir das 19h, no Centro Cultural Benfica, na Madalena, Recife.
Publicado pela Cepe, o livro tenta reparar uma injustiça cometida contra o artista praticamente desconhecido, mas que esculpiu aquela que é uma das esculturas mais emblemáticas e quase uma “carteira de identidade” do Nordeste. Mas seu criador, Armando Lacerda (1924-1980), é “historicamente injustiçado”, segundo Carlos Newton. E não só isso, é vítima de “apagamento”, embora tenha sido, também, um dos pioneiros da escultura moderna no Nordeste, ao lado de artistas como Abelardo da Hora (1924-1914) e Corbiniano Lins (1924-2018), que nasceram no mesmo ano de Armando e também atuavam no Recife, deixando suas marcas em praças, jardins, prédios. Carlos Newton enaltece o valor do artista, porém reconhece que sua obra não chega a ser tão extensa quanto a dos seus dois outros contemporâneos. “ Não só porque ele não foi artista em tempo integral, mas também porque o destino não lhe concedeu a longevidade dos outros dois, falecidos na casa dos 90 anos”.
Armando morreu aos 56, depois de uma trajetória de premiações com esculturas como O Pescador (1950), Cabeça (1951), Busto e Cabeça de Vaqueiro (1952), O Cangaceiro (1954), Mulher Rendeira (1955), Bailarina (1956), Mulher Rendeira (1967). Chegou a frequentar o Atelier Coletivo, formado por nomes que eram a vanguarda das artes plásticas na época em Pernambuco. Filho de uma família de classe média, nasceu no Recife, e sempre mostrou vocação para escultura, tendo se matriculado aos 16 anos, na Escola de Belas Artes de Pernambuco. Em 1947, ele se casa com Lígia Lacerda Azedo e passa a desempenhar outras atividades para sustentar a família, trabalhando em uma indústria de bebidas, que o obriga a viajar. Deixa, então, o Atelier Coletivo. No entanto, utiliza as horas vagas para trabalhar em suas peças, às vezes até tarde da noite. No Recife, suas esculturas ainda podem ser vistas na Universidade Federal de Pernambuco (O cangaceiro, no CAC), em edifícios (Monumento aos Navegantes, Edifício Portugal, Avenida Boa Viagem), na rua ( Cabeça do poeta Ascenso Ferreira, Cais do Apolo).
Embora não tenha a leveza das demais (incluindo as peças modernistas), a sua estátua mais famosa é mesmo a do Padre Cícero, que foi inaugurada em 1 de novembro de 1969, em Juazeiro do Norte, com proporções colossais: 17 metros de altura, sob um pedestal de oito metros. Ou seja, um monumento de 25 metros de altura, então a segunda maior escultura do Brasil e que só perdia mesmo para a do Cristo Redentor (38 metros, incluindo os oito de pedestal). Após a conclusão do monumento, ele retorna para Pernambuco e passa a residir em Olinda, em 1970. Ainda produz as estátuas de Coronel Ludugero e Otrope, personagens cômicos mais famosos em Pernambuco no final dos anos 1960 e que faleceram devido a um acidente aéreo (no Pará). A derradeira peça por ele confeccionada está no município de Caruaru, a 130 quilômetros do Recife, onde atuavam os dois humoristas, que no século passado eram praticamente os mais famosos do Nordeste.
“O Padre Cícero, de Armando Lacerda, conseguiu uma proeza que nenhuma obra de Abelardo da Hora ou Corbiniano Lins alcançou até hoje (e, sejamos justos, pouquíssimas obras artísticas, no mundo, conseguem almejar): inscreve-se em um seleto grupo de esculturas que oferecem à cidade, ao estado, à região ou mesmo ao país em que foram erguidas, uma espécie de carteira de identidade. No caso a de se constituírem como cartão postal por excelência do lugar”.
A colocação acima é do Professor Anco Márcio Tenório Vieira, no prefácio do livro sobre o escultor. Ele lembra que a estátua do Padre Cícero em termos de identidade, está para Juazeiro do Norte e para o Nordeste como a da Liberdade, de Frédéric Auguste Bertholdi, para Nova York; como a Torre Eiffel, de Alexandre Gustave Eiffel, para Paris; como o Cristo Redentor, de Paul Landowski e Carlos Oswald, para o Rio de Janeiro; o Monumento ao Laçador, de Antônio Caringi, para Porto Alegre; e o Monumento às Bandeiras, de Victor Bracheret, para São Paulo.
Para Anco Márcio, a estátua do Padim, tornou-se “tão visceralmente parte da identidade e do imaginário religioso nordestino, quanto são Asa Branca, de Luiz Gonzaga; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, ou “as famigeradas imagens pictóricas ou escultóricas de Lampião” ( o mais famoso cangaceiro nordestino). Ou seja, “O Pão e o Sonho” vem colocar Armando Lacerda no seu devido lugar, retirando-o de mais de quatro décadas de apagamento a que esteve relegado desde a sua morte.
Trata-se, portanto, de um livro mais do que necessário, inclusive para aqueles que tanto visitam a estátua de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, e que rezam ou pagam penitência a seus pés, achando que aquela imagem, tão gigantesca, foi um colosso que caiu do céu.
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Serviço:
Lançamento do livro O pão e o sonho: vida e obra do escultor Armando Lacerda, de Carlos Newton Júnior
Quando: 13 de novembro de 2024, quarta-feira
Hora: 19 h
Onde: Centro Cultural Benfica, na Rua Benfica, 157, Madalena, Recife (PE)
Preço: R$ 50 (impresso)
Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Cepe / Divulgação
Bravo! Ainda que tardiamente, foi feito justiça e reparação para o autor da obra.
Foto bonita com o cenário da Ponte da Boa Vista!