No Dia Internacional da Mulher, como o #OxeRecife costuma fazer em tal data, sempre busca uma mulher (ou mulheres) para homenagear. Algumas viveram em tempos distantes, outras em épocas mais recentes. Muitas que passaram por aqui já se foram, mas felizmente há muita gente viva, fazendo e acontecendo. Seja defendendo os direitos de gênero, lutando contra a violência e os feminicídios, ou denunciando-os inclusive através da arte. No teatro, no cinema. Hoje é dia de lembrar Soledad Barret, que há 51 anos foi assassinada no Recife por agentes da ditadura, após ter sido delatada aos militares por aquele homem que fingia ser militante usando o condinome Daniel. Mas que na realidade era ninguém menos que o famigerado Cabo Anselmo, um dos mais polêmicos agentes da repressão. Quando foi assassinada, Soledad estava grávida de “Daniel”. Coitada.
A primeira vez que tomei conhecimento da existência de Soledad, foi através do escritor Urariano Mota, que escreveu um livro sobre uma das “heroínas” que ele mais admira. Ela foi torturada e assassinada com outros companheiros, em um dos episódios mais violentos do regime militar brasileiro, que ficou conhecido como o Massacre da Chácara de São Bento. Paraguaia, Soledad tinha, 28 anos, e já havia lutado contra várias ditaduras então vigentes na América Latina. A história de Soledad, que continua contribuindo para despertar reflexões importantes no Brasil e no mundo, será revivida na noite dessa sexta-feira (8/3) no espetáculo “Soledad – A Terra é Fogo Sob Nossos Pés“, que há oito anos lota plateias, inclusive em circuitos internacionais. O espetáculo vai ser apresentado no Teatro Hermilo Borba Filho, às 20h.Além de ser encenada em capitais brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, já passou por vários países: Uruguai (Montevidéu); Paraguai (Assunção); Cuba (Havana); e ainda pela Espanha (Madri, Santander, Bilbao, Oruña de Piélagos, Cabezón de La Sal e Torrelavega). Na galeria de fotos abaixo, algumas passagens do espetáculo.
Sol tinha o DNA da política no sangue. Seu avô, o renomado jornalista e escritor espanhol, natural de Torrelavega, Rafael Barrett, foi uma grande inspiração ideológica para ela. Quando nasceu, seus pais e irmãos mais velhos já eram militantes e dedicavam suas vidas quase que integralmente à luta contra ditaduras em toda a América Latina. Os exílios políticos fizeram parte da sua vida desde muito nova, com menos de um ano de idade enfrentou o seu primeiro, na Argentina. Aos 17 anos, em mais um exílio, dessa vez no Uruguai, Soledad foi sequestrada por um grupo neonazista e teve suas duas pernas marcadas com a suástica, através de uma navalha. Ela negou-se a gritar palavras em saudação a Hitler e por isso sofreu essa brutal violência. Com isso, ao invés de se intimidar, Soledad passou a se dedicar ainda mais à militância. Imediatamente foi para Moscou estudar teorias comunistas. Depois de um ano foi novamente para a Argentina e em seguida para Cuba, onde treinou táticas de guerrilha, casou e deu à luz a sua única filha, antes de vir para o Brasil. Até ser entregue à morte pelo seu “noivo” fake. O resto da história, vocês já conhecem.
A dramaturgia do espetáculo surge a partir da cronologia da personagem, alcançada através de pesquisas de campo, músicas da época, poesias (muitas de ex-presos políticos), cartas, entrevistas sistemáticas, acesso a documentos e o contato com familiares – especialmente as parceiras do projeto, Ñasaindy e Ivich Barrett (filha e neta de Soledad, respectivamente). Vale ressaltar que Ñasaindy, inclusive, além de ter contribuído para esse processo de pesquisa, ainda assina a identidade visual do projeto, cedeu uma de suas composições para a trilha sonora do espetáculo e integra, como debatedora fixa supracitada, a equipe base de circulação da obra. Após o término de todas as apresentações a produção realiza debates, geralmente com temas que envolvam o ativismo artístico encampado pelo grupo. A peça é encenada pela atriz pernambucana e idealizadora do projeto, Hilda Torres.
A direção é da atriz e diretora que nasceu na Argentina, mas foi ainda pequena para São Paulo, Malú Bazán. As duas são responsáveis pela construção da dramaturgia, que toma fôlego a partir de uma costura entre diversos instrumentos de pesquisa e obras poéticas, que datam de 1904 até a contemporaneidade. Com duração de 60 minutos, o solo desloca o espectador pra uma época aparentemente conhecida, mas pouco entendida e ao mesmo tempo levanta questões da atualidade, proporcionando um espaço de reflexão, provocação e possibilidades, sobretudo nos dias atuais. Trata-se de uma narrativa que traça um ousado “diálogo” entre o passado e o presente, nos levando a perceber que as coisas não mudaram tanto assim.
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SERVIÇO
Quarto Festival de Teatro Rosa dos Ventes
Evento: encenação de Soledad – A Terra é Fogo Sob Nossos Pés (espetáculo e debate)
Quando: Sexta-feira, 8 de março
Horário: 20h
Onde: Teatro Hermilo Borba Filho
Endereço: Cais do Apolo, 142, mas há também entrada pela Rua do Apolo, Recife Antigo
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$15 (meia)
Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Festival de Teatro Rosa dos Ventres
Soube do espetáculo hoje nesta sua coluna. Grato, Letícia Lins
Desconhecia esse episódio triste que o oxerecife nos trouxe hoje. Agradeço pela informação. História comovente a de Soledad. Bem a propósito o espetáculo que conta a história de Soledad ser apresentado hoje. Confesso que me falta coragem para ver tal encenação. Quantas atrocidades a ditadura cometeu.
OBG.
Ou melhor: grato pelo texto neste endereço que é mais que um blog.
Sem você e seu livro, eu não saberia tantos ricos detalhes da vida de Soledad. Parabéns eternos!
Eu lembro, Letícisa Lins, da sua reportagem sobre “Soledad no Recife” publicada em O Globo.