O pernambucano Thiago Lucas é um chargista incomum. Aos 34, já ostenta nada menos de 23 premiações no currículo, o que não é pouco. Aliás, é muito mais do que seria de se esperar em um profissional de sua idade. Mas o artista faz por onde. Tudo por conta não só do seu traço inconfundível, mas sobretudo pelo olhar aguçado para a realidade de Pernambuco, do Brasil, do mundo. E sem descuidar – jamais – da perspectiva histórica e social dos assuntos que aborda. E este tanto pode ser sobre o negacionismo, sobre os arroubos antidemocráticos do ex-capitão ou mesmo a explosão da fome, que vem nos transformando em um país de famintos. Afinal, são mais de 33 milhões de pessoas que vão dormir sem saber se terão o que comer no dia seguinte. Ou seja, em situação de insegurança alimentar, uma verdadeira tragédia social que vem explodindo ainda mais em nosso país.
“É imperativo que a charge denuncie as injustiças sociais e que esteja ao lado dos menos favorecidos. Seu instrumento de ação é o humor reflexivo, que desnuda a roupa dos reis que exploram o povo”, afirma ele, que também é historiador, com pós-graduação em História do Nordeste, quando desenvolveu pesquisa a respeito da charge enquanto discurso crítico sobre a chamada “indústria da seca” nos nossos sertões. Não é à toa, portanto, que o jovem artista tenha ido buscar inspiração em dois clássicos da literatura pernambucana, para criar uma história de quadrinhos que marca um encontro da Morte e Vida Severina, de João Cabral de Mello Neto (1920-1999) com a A Geografia da Fome, de Josué de Castro (1908 – 1973).
O “encontro” daria até mote para peleja entre cantadores, não é mesmo? Na historinha em quadrinhos idealizada por Thiago Lucas, o fio condutor da narrativa entre os dois ícones da cultura (não só pernambucana, mas brasileira) é a temática da fome e da desigualdade social. É só ler o poema de Cabral e o livro de Josué de Castro, para entender os pontos em comum entre os versos do primeiro e na prosa do segundo:
“São temas que permeiam a vida das pessoas mais pobres ao longo da história do Brasil e que estão tão evidentes nos dias atuais. Chegamos à triste marca de mais de 33 milhões de brasileiros que passam fome todos os dias, número que reflete e expõe as entranhas de uma tragédia social. Brasileiros e brasileiras que não têm o que comer são vítimas da violência do sistema político e econômico a que estamos submetidos. É uma realidade torturante que amplifica o grito agonizante das pessoas necessitadas.
Thiago Lucas lembra que a obra de João Cabral narra “a trajetória de um retirante da seca do Nordeste que tenta fugir da áspera realidade a que está subjugado e que, ao longo de sua peleja existencial, cruza com a dor e a morte, como em um labirinto onde as dificuldades em encontrar a saída se tornam uma dura jornada exterior e interior”. Ele até recria o “labirinto” em sua HQ. E salienta que Geografia da Fome faz uma análise esmiuçada da insegurança alimentar. “Josué de Castro trata o tema como um fenômeno social, político e econômico. Ou seja, a fome é o resultado de uma politica institucional e um projeto de poder causador do descaso e da exclusão que joga inúmeras pessoas para as bordas da sociedade”. São “seres humanos que tentam se segurar no penhasco da ausência de cidadania”. Confira, abaixo, a história de quadrinhos criada por Thiago Lucas, em que contextualiza a obra dos dois mestres com a triste realidade do Brasil 2022:
Mesmo que ele não nos explique, a inspiração na junção das obras mais famosas de João Cabral e de Josué de Castro é evidente. Mas não custa nada ouvi-lo: “Procurei realizar esse encontro de visões do mundo por meio das artes gráficas”, afirma . “São nove imagens que compõem uma história em quadrinhos, acompanhados de textos das duas obras”. Ele mistura prosa e verso, temperando-os com a rima, para expor o clamor social pelo qual passa hoje a maioria da população do nosso país. Thiago não é indiferente a essa dramática situação:
“A arte precisa estar sensível às tragédias sociais e nada mais terrível para uma sociedade quando nos deparamos com a violência causada pela fome.
Para ele, é preciso denunciar “essa situação desesperadora em que se encontram severinos e severinas nesse país fulminado pelo relevo acidentado da geografia da fome”. Grande Thiago Lucas!
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Ilustrações: Thiago Lucas / Divulgação