Na Argentina de Javier Milei, um “réquiem” para Soledad Barret, assassinada na ditadura brasileira

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Depois de passar por cidades como Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo; Montevidéu (Uruguai); Assunção (Paraguai); Havana (Cuba); e excursionar por Madrid, Santander, Bilbao, Oruña de Piélagos, Cabezón de la Sal e Torrelavega (Espanha), o espetáculo “Soledad – A terra é fogo sob nossos pés”, encerra nesta sexta-feira (24/11) uma temporada de três dias em Buenos Aires.  A encenação lá é mais do que oportuna, pois coincide com a vitória de Javier Milei na eleição presidencial, um cidadão de direita que flerta com regimes autoritários e cuja ascensão  ao poder preocupa os democratas dos países vizinhos, como o Brasil.

A peça relata a dramática história da militante paraguaia Soledad Barret Vidma, que lutou contra várias ditaduras da América Latina inclusive contra a implantada no Brasil, em 1964, que suprimiu eleições diretas, impôs censura aos órgãos de comunicação, e que torturou e matou os inimigos do regime. Soledad é uma dessas vítimas. Ela foi assassinada aos 28 anos, na Região Metropolitana do Recife, em emboscada montada pelos militares e que ficou conhecida como  o Massacre da Granja de São Bento. Soledad foi traída pelo “noivo”, que era ninguém menos que o famigerado Cabo Anselmo, que se infiltrou no grupo de militantes usando codinome (Daniel). Ele fingia ser um militante de esquerda, e se dizia apaixonado por Soledad. Chegaram a noivar.  Tudo farsa para usar a namorada como isca.

Peça com história da militante Soledad Barret (torturada e assassinada na ditadura do Brasil) é encenada na Argentina

Pouco depois, a “célula” onde os “subversivos” se reuniam era invadida por agentes da repressão, e ela seria barbaramente torturada e assassinada. Dizem que os maus tratos foram tantos, que ela teria expelido o feto no local. O fato de estar grávida não sensibilizou o “noivo” nem os demais  algozes. O massacre aconteceu há 50 anos, mas é pouco explorado nos livros de história, porém foi resgatado por um escritor pernambucano, Urariano Mota. Vários ativistas, além de Soledad também morreram. Ele publicou um título contando a trajetória de Soledad. O grupo que vem encenado a história da militante é o Cria do Palco, do Recife. Após as encenações, há debates sobre a arte como instrumento de transformação social, atividade que conta com a representação de organizações locais. E também com a presença de Ñasaindy Barrett, que é filha de Soledad (nascida em Cuba antes de sua mãe vir para o Brasil). Ela é debatedora fixa do projeto.

“Sol”, como era conhecida entre os mais próximos, teve sua trajetória desenhada em meio à luta sociopolítica de sua família. Seu avô, o renomado jornalista e escritor espanhol, natural de Torrelavega, Rafael Barrett, foi uma grande inspiração ideológica para ela. Quando nasceu, seus pais e irmãos mais velhos já eram militantes e dedicavam suas vidas quase que integralmente à luta contra ditaduras em toda a América Latina. Os exílios políticos fizeram parte da sua vida desde muito nova, com menos de um ano de idade enfrentou o seu primeiro, na Argentina. Aos 17 anos, em mais um exílio, dessa vez no Uruguai, Soledad foi sequestrada por um grupo neonazista e teve suas duas pernas marcadas com a suástica, através de uma navalha. Ela negou-se a gritar palavras em saudação a Hitler e por isso sofreu essa brutal violência. Com isso, ao invés de se intimidar, Soledad passou a se dedicar ainda mais a militância. Imediatamente foi para Moscou estudar teorias comunistas. Depois de um ano foi novamente para a Argentina e em seguida para Cuba, onde treinou táticas de guerrilha, casou e deu à luz a sua única filha, antes de vir para o Brasil.

A peça é encenada pela atriz pernambucana e idealizadora do projeto, Hilda Torres. A direção é da atriz e diretora que nasceu na Argentina, mas foi ainda pequena para São Paulo, Malú Bazán. As duas são responsáveis pela construção da dramaturgia, que toma fôlego a partir de uma costura entre diversos instrumentos de pesquisa e obras poéticas, que datam de 1904 até a contemporaneidade. Com duração de 60 minutos, o solo desloca o espectador pra uma época aparentemente conhecida, mas pouco entendida e ao mesmo tempo levanta questões da atualidade, proporcionando um espaço de reflexão, provocação e possibilidades, sobretudo nos dias atuais. Trata-se de uma narrativa que traça um ousado “diálogo” entre o passado e o presente, nos levando a perceber que as coisas não mudaram tanto assim.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Cria de Palco /Divulgação

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