Dia desses, passando uma tarde em um banquinho no meio do verde gramado da Livraria Jardim – um oásis no Centro do Recife – foi que observei como é bonito esse prédio da foto acima, que hoje pertence ao Shopping Boa Vista que, sinceramente, deveria cuidar dele com um zelo maior. Situado na Rua do Giriquiti, 48, o imóvel passa quase despercebido por quem transita apressado por aquela via, localizada no bairro da Boa Vista.
Foi contemplando-o à distância, de um ângulo privilegiado, que percebi a sua beleza. Descobri, depois, que é um Imóvel Especial de Preservação (IEP), assim reconhecido pela Prefeitura do Recife. No entanto, a importância do Juvenato Dom Vital não é só arquitetônica, mas também histórica. No século passado, ali funcionou um conglomerado de quatro escolas, fundado por um cônego. Posteriormente, nos anos de chumbo, em que presos políticos morriam nas masmorras da ditadura, era dali que saíam as denúncias dos atentados contra os direitos humanos, através da Comissão de Justiça e Paz, órgão da Arquidiocese de Olinda e Recife, então comandada por ninguém menos que Dom Hélder Câmara, o Dom da Paz (1909-1999), hoje alvo de processo em tramitação no Vaticano, que pode elevá-lo à categoria de Santo.

A Comissão de Justiça e Paz era, por assim dizer, a voz dos perseguidos, desaparecidos e de familiares que reclamavam os corpos dos seus mortos nos órgãos de repressão. Na época, era a instituição que mais denunciava os abusos cometidos. E ela funcionava exatamente no Juvenato Dom Vital, um dos braços da Arquidiocese de Olinda e Recife, quando esta era chefiada poie Dom Hélder. A efervescência era tão grande na CJP que nos meios jornalísticos, havia setoristas para cobrir só a Comissão. Todo dia tinha uma novidade.
Era no Juvenato que trabalhava o Padre Antônio Henrique Pereira Neto, que foi sequestrado, torturado e assassinado em 27 de maio de 1969, por ser assessor do Dom, que era chamado de “bispo vermelho” pelos militares. O crime teve repercussão internacional, pois acredita-se que tenha sido para intimidar o religioso, cuja simples menção ao seu nome era na época censurada na Imprensa. Aí, quem falava era a CJP. Um mês antes da morte de Padre Henrique, o Juvenato havia sido alvo de disparos de armas de fogo feitos por desconhecidos aos gritos de CCC (Comando de Caça aos Comunistas).
Segundo informou o Dom em depoimento efetuado em 1975, a agressão ocorreu “poucas horas antes” do atentado ao então estudante Cândido Pinto (1947-2002), que aconteceu no dia 29 de abril de 1969. Cândido era estudante de engenharia e presidia a UNE -PE (União dos Estudantes de Pernambuco). A investida dos órgãos de segurança contra Cândido deixaram-no paralítico até o fim da vida. O Dom afirmava, ainda, não haver como esquecer o ocorrido (disparos contra o Juvenato), “porque foi o mesmo CCC que ameaçou o Padre Henrique por telefone”. Portanto, o prédio que abrigou no passado o Juvenato Dom Vital por ser um IEP merece ser pintado, conservado. E por ser palco de fatos importantes do Brasil, merece placa de bronze contando a sua história. Não deveria, jamais, ser confundido como a entrada de uma garagem do Shopping, como ocorre atualmente. Fica a sugestão para os atuais proprietários do IEP.
Lembrete do antropólogo Fernando Batista, ao ler essa postagem: “Mas não há mais nada por trás da fachada! O Shopping derrubou tudo! Trata-se do mesmo processo que acometeu aquele casario comprado pela Casa dos Frios da Rui Barbosa”.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Letícia Lins e Cepe /Acervo #OxeRecife