Além do Oscar: a importância histórica de “Ainda estou aqui”

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A quinta-feira, em que foram anunciadas três indicações ao Oscar para “Eu ainda estou aqui” é uma vitória não só para Fernanda Torres, para o diretor Walter Salles,  e para o cinema brasileiro. Fernandinha deu show na sua interpretação, mas junto com indicação ou premiação, o filme serve para ratificar para a nossa Nação a importância do regime democrático.  Principalmente para as novas gerações, que não vivenciaram os anos de chumbo pós 1964 de sequestros, desaparecidos, torturas naquela época de tanto obscurantismo e de temor pelo preço da nossa liberdade.

Sim, tivemos torturas nas masmorras da ditadura. Sim, tivemos desaparecidos cujos corpos não apareceram até hoje. Muito jovem, ainda, trabalhava no Jornal do Brasil  (RJ), e  acompanhei de perto o drama vivido pela família de Rubens Paiva, que foi sequestrado e torturado até à morte pelos agentes da repressão. A mulher, Eunice Paiva (magistralmente interpretada por Fernanda Torres no filme), antes uma dona de casa, passou o resto da vida lutando em defesa dos direitos humanos e pelo direito de enterrar o corpo do marido. Como ela, não foram poucas.  E algumas delas até são lembradas na letra de “O Bêbado e o Equilibrista” (de João Bosco e Aldir Blanc), como Maria (viúva de Manuel Fiel Filho) e Clarice (viúva de Vladimir Herzog), cujos maridos – como Rubens Paiva –  foram também torturados e assassinados pelos militares.

“ O Bêbado e o Equilibrista” seria, por esse motivo, transformado em Hino da Anistia, como “Para não dizer que não falei de flores” (Geraldo Vandré) foi considerado como um hino de resistência, e era cantado ao final de qualquer manifestação contra a ditadura. Fosse em ambientes fechados ou públicos. Levei dois dos meus netos – Henrique e César (os mais velhos) – para assistir o filme estrelado por Fernanda Torres. Acho importante que todos os avós e pais façam o mesmo. Também já os levei para ver o Memorial da Democracia, que funciona no Sítio da Trindade, no bairro de Casa Amarela, Zona Norte do Recife. Porque é preciso que todos saibam a tortura que é uma ditadura, quando nos é roubado o direito do voto, da liberdade de expressão, e de viver em um estado onde as leis são respeitadas.  Tivemos recentemente um presidente  (cujo nome me recuso a escrever) que dizia que no Brasil nunca houve ditadura nem tortura.

Não sei como esse ex-Presidente definiria casos como os de Vladimir Herzog, de Rubens Paiva, de Manuel Fiel Filho e de Zuzu Angel, sobre a qual falaremos adiante.  Ele até prestou homenagem a torturadores, como o General Brilhante Ustra, de triste memória. Derrotado na última eleição presidencial, articulou um golpe que só não se consumou devido à força (até que enfim) de nossas instituições democráticas.

Há outro caso histórico gritante, que foi o de Elizabeth Teixeira, cuja família sofreu uma diáspora, por conta da perseguição política. O marido inspirou o saudoso cineasta Eduardo Coutinho a filmar sua saga no premiado documentário “Cabra marcado para morrer”. Outra histórica emblemática é de Zuzu Angel, estilista cujo filho, Stuart, foi sequestrado, torturado e morto pela ditadura. Ela usava as suas coleções para protestar contra o sumiço, fez o que pôde para libertá-lo, mas morreu tragicamente em um acidente de carro, que teria sido provocado pelas forças da  repressão. A história de Zuzu e de Eunice Paiva estão reunidas em um só capítulo  do livro “As guerreiras da esperança”, sob o título “Duas mulheres de verdade”, do autor Aluízio Falcão.

O livro foi publicado  pela Cepe em 2024. E sua leitura, sinceramente, recomendo. Nele constam outras biografias de mulheres que se destacaram pela sua ação política e pelo papel contra a ditadura, como a própria Elizabeth Teixeira (capítulo “Marcada para viver”), Anita Paes Barreto (“A voz feminina do MCP)”, Naíde Teodósio (“A dama invisível das esquerdas”), e Dilma Roussef (“A primeira mulher na presidência”).

Nessa semana, recebi fotografias via Zap que dão conta de “Ainda estou aqui“,  na França e em Portugal. Na primeira, o cartaz do filme em espaço público, em Paris. A segunda, mostra uma fila quilométrica, em um cinema do Porto, em Portugal, onde as pessoas – mesmo sob um frio de três graus – aguardavam a vez de comprar o seu ingresso, para assistir “Ainda estou aqui”. O que é uma coisa boa para não só para o nosso cinema como para todos os brasileiros. Nós lutamos e, felizmente, estamos todos aqui. E bom lá na cidade portuguesa porque Portugal, como o Brasil, também viveu uma ditadura. O regime salazarista durou 41 anos, pois começou em 1933 e só terminou com a chamada Revolução dos Cravos, em 1974. A do Brasil, pelo menos, foi menor. O regime autoritário durou 21 anos, de 1964 a 1985, período em que fez um grande estrago, inclusive nos direitos humanos. O regime começou a cair por pressão o povo na rua, com multidões e comícios históricos, pedindo anistia para os presos políticos e diretas já. Ou seja, o velho chavão “o povo unido jamais será vencido”, mostrou o quanto a união popular fez a democracia voltar. Não foi fácil. E é nosso dever lutar por ela, para que a ditadura não volte nunca mais. Aliás, tortura nunca mais, também.

Nos links abaixo, você confere mais informações sobre democracia e ditadura.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Internet (divulgação do filme) e redes sociais

2 comments

  1. Bem dito seu texto, Letícia, foram tantos torturados, desaparecidos, mortos sem corpos; tantos torturadores, perseguidores e assassinos que não me faz bem lembrar. Ainda Estou Aqui fala do passado negro e infinitamente vergonhoso do Brasil sem expor aos olhos do público crueldade extrema. Tudo implícito, nada explícito, graças a primorosa direção de Walter Salles.

  2. Perfeito texto, Letícia. Palavras vindas do fundo da alma de quem viveu esse tempo terrível, assim como eu, que não pode ser esquecido nem tão pouco desejado, como recentemente alguns tentaram ressuscitar. Parte vergonhosa da nossa história. Esse filme chegou em ótima hora, momento oportuno, pra se abrir uma roda de conversa com esses jovens sobre a importância da democracia. Tortura nunca mais.

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