Este é um depoimento emocionado sobre Eduardo Collier Filho, que tinha apenas 17 anos quando foi preso, torturado e “desaparecido” pela ditadura. No dia que saberemos se o filme “Ainda estou aqui” – que retrata sequestro, prisão, tortura e morte do ex-Deputado Rubens Paiva – o #OxeRecife publica o que diz Maria do Rosário Collier do Rego Barros, irmã gêmea de Duda (como ele era mais conhecido), que relata a dor do luto inconcluso, aquele tão bem descrito na postagem anterior, em artigo do psicólogo Marcos Torati.
O caso de Duda – juntamente com o de Fernando Santa Cruz – são dois dos mais emblemáticos de “desaparecidos” ocorridos durante a ditadura em Pernambuco. Rosário falou sobre o assunto no evento “Ainda estou aqui”, que ocorreu no final de fevereiro, durante roda de conversa em que esteve presente, com tema “Ação Popular, uma geração em luta”. O encontro, que ocorreu na UFRJ, foi resultado de parceria entre o NEPP (Núcleo de Estudos de Políticas Públicas e Direitos Humanos), Coletivo Fernando Santa Cruz,Instituto 215 e UFRJ.
Vejam o que diz Maria do Rosário, irmã gêmea de Eduardo Collier, cuja família passou anos procurando o cadáver do militante:
“Hoje faz 51 anos do desaparecimento de meu irmão Eduardo Collier Filho, que foi militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML) e que viveu a partir de 1968 na clandestinidade. Dar um testemunho desse tempo em que vivemos na busca para encontrá-lo, me leva a reconectar com o que foi sua vida. Aos 17 anos, Duda, como chamávamos em família, saiu de casa para fazer o vestibular na Faculdade de Direito da Bahia. Durante todo esse tempo, mantivemos contato regular. Por sermos irmãos gêmeos, nossa relação era muito forte e cúmplice. A entrada forçada na clandestinidade se deu após sua prisão no Congresso da UNE em Ibiúna, quando Eduardo passou a ser perseguido para ser preso. Isso produziu um doloroso distanciamento, pois perdemos o contato direto com ele”.
“Nossos encontros passaram a ser clandestinos e, por razões de segurança, eu e minha mãe não podíamos saber nada sobre seu cotidiano. Toda vez que nos despedíamos não sabíamos quando, como e se iríamos reencontrá-lo. A cada evento que marca essa data, que marca o horror dos acontecimentos que vivemos no tempo da ditadura no Brasil, sou convocada a me conectar com a dor dilacerante de não ter tido direito ao ritual de enterro como função de despedida. Revisitando a cada ano, há mais de meio século, esse processo de luto em aberto. O que torna o trabalho de luto possível? Essa é uma pergunta que insiste não só pra mim, mas certamente para os familiares dos desaparecidos. É uma pergunta que terá sua resposta sempre no singular”.
“Lembro no filme “Ainda estou aqui”, o momento em que os irmãos se perguntam quando enterraram seu pai, ou seja, quando puderam iniciar o trabalho de luto. Cada um tem uma resposta diferente do momento em que concluíram que o pai não voltaria, que o pai tinha morrido, tinha sido assassinado. Para mim, se deu após uma reunião com o pessoal da Cruz Vermelha que tentava nos ajudar a achar Duda e Fernando*. A Cruz Vermelha, até o momento, trazia informações que nutriam nossas esperanças de poder finalmente libertá-los. Recebiam as roupas e os alimentos que trazíamos para serem entregues a eles. Mas nessa última vez, tudo foi devolvido com a mensagem explícita de que Duda e Fernando estavam mortos. “Foi a primeira indicação de seu assassinato, que veio depois de juntarmos informações vindas de diferentes fontes. Eu e ele tínhamos 25 anos. Indescritível a sensação de não poder ter acesso a nenhum objeto, a nada que lhe pertencesse, uma roupa, uma caneta, um livro que estivesse lendo. Duda escrevia muitas poesias, aproveitava qualquer pedaço de papel para escrevê-las. Felizmente, tivemos, mais tarde, a chance de receber algumas delas que tinham sido entregues antes por ele a amigos. A escolha de meu irmão pela atuação política na Ação Popular não implicava de saída uma escolha pela clandestinidade. Ela se impôs pela forte repressão e também pela orientação do partido a uma “integração na produção” como estratégia política. Duda trabalhou, alimentando fornos com carvão como operário na Mannmesman em Minas Gerais e em fábricas do ABC em São Paulo”.
“Só tivemos acesso a esses fatos bem depois, através de conversas com companheiros que partilharam seu percurso em momentos diferentes. Um marco importante foi o recente evento organizado por Nilmário Miranda pela comissão de Direitos Humanos, na Usina Cambahyba, onde supostamente seu corpo foi incinerado. Cada informação, cada contextualização, cada história, anedota, sentimentos trazidos por essas conversas, nos ajudam imensamente. Eles materializam em lembranças vivas a trajetória de Duda nesse período que permanece até hoje com inúmeros pontos cegos”.
Duda iniciou sua militância na AP como aluno da Faculdade Federal de Direito em Salvador. Época em que teve uma atuação que deixou marcas de sua personalidade naqueles que conviveram com ele. Traços repetidamente verbalizados nos relatos feitos por muitos companheiros desse período como a solidariedade, a alegria, o gosto pela vida, o não sectarismo, a força de sua fala desejante, decidida. Um orador de primeira grandeza, que ao discursar tocava no coração e nas tripas de cada um. Outro conhecimento decisivo que me marcou profundamente foi com Lea, a última namorada de Duda. Ela veio até a mim se apresentar num evento de homenagem a Fernando e a Eduardo na OAB e dizer que reconhecia na minha fala o companheirismo, a solidariedade e a alegria que caracterizavam meu irmão. Ela trouxe histórias do cotidiano dele para além da militância cheias de juventude e entusiasmo que aquecem meu coração. Lea só conseguiu saber de seu desaparecimento, porque viu no jornal uma notícia com a foto dele e de Fernando. E assim teve acesso finalmente ao seu nome verdadeiro”.
“Impossível colocar em palavras a função, a força com que ela nos reconectou a esse pedaço de vida dele que nos escapa. Duda entrou na clandestinidade quatro anos depois da morte de nosso pai em abril de 1964. Apenas seis dias depois do golpe militar no Brasil, que teve efeito mortífero sobre ele. Nosso pai trabalhava como advogado numa fábrica de tecidos e providenciou, defendendo com garra, a proteção dos operários que eram visados pela repressão. Sofreu um infarto fulminante ao sair da reunião em que tinha conseguido prevalecer entre os dirigentes a proteção desses operários. “Meu irmão teve desde muito cedo o gosto pela atuação política e sempre foi incentivado por meu pai. Duda sabia dos riscos que corria, mas também tinha consciência que essa luta era fundamental. E apesar de todas as dificuldades que passava, reafirmou de inúmeras formas essa decisão pela luta na clandestinidade. Ele conseguiu transmitir a sua causa à nossa mãe, tendo sido essencial para ajudá-la nessa travessia de sofrimento. O luto e a separação são necessários para que a memória abra novos caminhos de compromisso com a vida que se atualiza a cada dia. No filme “Ainda estou aqui” me intrigou a cena da foto em que Eunice Paiva diz a seus filhos para sorrirem. Pude me dar conta que com isso ela tirava seus filhos e saía ela própria da visada daqueles que gozam com o sofrimento dos torturados, como acontece na prática da tortura. O sorriso ali queria dizer “BASTA! Vocês não vão gozar de nosso sofrimento. Um basta à tortura e um sim à vida.
“Tortura nunca mais, que tem sido o lema dos que continuam a lutar pelo fim da opressão e que permanecem em alerta contra as ameaças constantes de Golpe que estamos sofrendo. Na última vez que eu e Duda nos vimos, uma fala sua foi fundamental para me permitir seguir adiante comprometida com a minha vida futura e com minhas escolhas. Foi uma fala dele que marcou a diferença dos nossos caminhos, uma fala de aposta e admiração pela minha escolha profissional pela psicanálise. Hoje sei que ter tido a chance de fazer minha análise pessoal, seguindo uma formação atenta ao poder subversivo da análise, me deu a oportunidade de não paralisar nas minhas dores e sofrimentos. Me ajudando a continuar apesar das inúmeras encruzilhadas do caminho. Sigamos vivos, sigamos nossos caminhos, sigamos a testemunhar essa nova geração que saberá valorizar nossas transmissões na defesa pela democracia”.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Letícia Lins e NEPP / Coletivo Fernando Santa Cruz /UFRJ (divulgação)
O filme Ainda estou aqui, acontece em um momento oportuno, onde muitos tentavam enaltecer e trazer de volta um tempo tão terrível, brutal, doloroso da nossa história. Só quem viveu sabe. Tortura, ditadura, nunca mais. Duda é Fernando, é uma gota no oceano de atrocidades vividas nesse época.