Saneamento no Recife: Século 21 de dejetos infectos na praia e no asfalto

Nos anos 1970, li uma vez uma curiosa reportagem assinada por Arlete Chabrol, então correspondente em Paris do Jornal do Brasil, veículo em que eu trabalhava na época. Ela descrevia a organização de esgotos nos subterrâneos da cidade luz. E contava que o sistema era tão eficiente que qualquer objeto perdido que escoasse pela pia ou banheiro, era facilmente encontrado. Isso porque os quarteirões de Paris tinham “quarteirões” correspondentes (e numerados) no ambiente undeground, por onde as tubulações passavam (e ainda passam). Era só telefonar para a companhia prestadora do serviço, para localizar rapidamente até um “anel ou aliança” que tivesse escapado pelo ralo durante o banho ou na lavagem de mãos, por exemplo.

Uma realidade bem diferente da que os pernambucanos viviam na época (e vivem, ainda hoje). Pouco mais de 20 anos depois, leio um outro relato sobre aquele assunto. Foi escrito por uma pessoa que perdera a chave do carro, não lembro se em galeria pluvial da rua ou no ambiente doméstico. Ela acionou o telefone e, em poucos minutos, uma “brigada especial de funcionários das companhia de esgotos” chegou. “Seu trabalho inclui desentupir esgotos, drenar porões inundados, e procurar óculos, chaves, carteiras e até animais de estimação que regularmente desaparecem nos 18 mil bueiros de Paris”, esclarecia brasileiro morando na França.

Na Rua Edson Álvares, no bairro de Casa Forte, esgoto estourado escorre em área onde há hospital

Durante a assinatura daquela que era a maior PPP do Brasil, em 2012, ainda na gestão do então Governador Eduardo Campos (1965-2014),  cobri a cerimônia como repórter do jornal “O Globo”. Lembro-me que entre as autoridades presentes, foi dito alto e bom som que a parceria entre a Compesa e a iniciativa privada permitiria que que qualquer esgoto estourado “seria reparado em período não superior a 24 horas”. Essa frase ficou na minha memória até hoje. Lembro-se que, à época, achei a pretensão bem ambiciosa e pouco realista. Mas como não sou sanitarista nem engenheira, preferi sonhar com essa possibilidade nesse Recife tão lindo, mas de tantas ruas fedendo a xixi e cocô. Desde então, nada aconteceu neste sentido. Durante minhas caminhadas, vejo os mesmos esgotos estourados há dias, semanas.  Até meses.

Em Boa Viagem, Zona Sul do Recife, o despejo é evidente em frente ao Prédio Ambrósio Trajano (número 3650), onde a água preta e fétida dá na areia da praia. Dizem os ambulantes do local que é “água da chuva”, mas eu duvido porque no Recife as águas pluviais se misturam com a de esgotos (clandestinos ou não) e o fedor era muito forte. Deve estar tudo junto e misturado.  Também havia vazamento, porém no asfalto, em frente ao Edifício Portugal, na mesma Avenida Boa Viagem. Recentemente me defrontei, também, com um despejo feito em frente ao Restaurante Ostramar, na Avenida Dezessete de Agosto, em Casa Forte, Zona Norte do Recife. Felizmente, o problema foi corrigido logo. Não sei se por interferência dos donos do estabelecimento ou da Compesa.

Em Casa Forte, esgoto estourado em frente a restaurante sofisticado, logo na entrada. Despejo já resolvido

Mas em frente ao Hospital Hapvida, na Rua Edson Álvares, em Casa Forte, há esgoto escorrendo há dias. O despejo infecto – e mais problemático ainda por ser de hospital – escorre há mais de duas semanas, sem que nem Prefeitura nem Compesa deem um jeito. Fica correndo aos borbotões, rente ao meio fio da calçada, sendo cobre a calçada em dias de chuva, quando a rua alaga.

E aí, ninguém sabe onde está pisando e enfrentando o risco de ter doenças como a leptospirose. Pior, ao lado do despejo ficam ambulantes que vendem lanches às pessoas que vão visitar pacientes do Hospital. Imaginem comer no meio de tamanho fedor…  E pensar que no século passado o Recife era cem por cento saneado e a população podia se banhar nos rios e riachos… Hoje, em pleno século 21, os domicílios atendidos com saneamento na cidade são pouco mais de 30 por cento, enquanto rios e canais (que um dia foram riachos cristalinos) transformaram-se em esgotos a céu aberto. Triste!

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Texto e fotos: Letícia Lins / #OxeRecife

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