Pioneiro no Brasil, Memorial da Democracia mostra acervo de atrocidades cometidas pela ditadura

Quem vivenciou os anos de chumbo a partir de 1964 sabe o significado de uma ditadura. Conheceu de perto o pesadelo da inexistência do estado de direito, da tortura praticada nas masmorras da repressão, do “desaparecimento” de entes queridos. Tortura, aliás, que o Presidente Jair Bolsonaro diz “nunca ter existido”. Embora tenha prestado homenagem pública a um dos mais famosos adeptos daquela prática violenta e vergonhosa, como é o caso do famigerado Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que foi chefe do Doi-Codi do II Exército, setor que ficou famoso como um dos mais atuantes centros de repressão política do país, e no qual a tortura era a regra.

Para evitar que atrocidades caiam no esquecimento, muitos fatos omitidos pela historiografia oficial estão, agora, reunidos em um só lugar, em iniciativa pioneira no Brasil. Conforme o #OxeRecife antecipou na semana passada, o casarão secular do Sítio da Trindade, em Casa Amarela, passa a abrigar o Memorial da Democracia de Pernambuco. O equipamento foi inaugurado na última quinta-feira, pelo Governo de Pernambuco e pela Prefeitura do Recife, e passa a funcionar como “um espaço de preservação da história da luta pela liberdade”.  O antigo chalé rosa – agora pintado de branco e vermelho – pertence ao município, porém o Prefeito João Campos (PSB) assinou termo de cessão ao Estado para abrigar os documentos por 30 anos. Entre fotografias, textos, depoimentos e outras informações, o Memorial abriga o acervo reunido pela Comissão da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, que levantou e esclareceu crimes praticados pela ditadura, entre torturas e pessoas desaparecidas em Pernambuco. A CEMVDHC foi criada em 2012, pelo então Governador Eduardo Campos (1964-2014).

Memorial da Democracia traz nomes e fotos de vítimas da ditadura, entre eles Soledad Viedma Barret e Padre Henrique

O espaço dedicado à preservação da memória das lutas pela democracia conta com  salas com exposição onde o visitante poderá acessar versões digitais do relatório final da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara (CEMVDHC).  Com mais de 800 páginas, e os mais de 70 mil documentos coletados, entre prontuários, certidões de óbito, entrevistas e depoimentos, o relatório constitui um prato cheio para os pesquisadores. O visitante vai ver fotos e nomes dos perseguidos, torturados e mortos pela ditadura. Ou que foram “desaparecidos”.

Está previsto ainda no equipamento uma biblioteca com títulos que convergem para a temática proposta pelo Memorial, sala para palestras, debates e para exibição de filmes. O conteúdo histórico do Memorial é distribuído em cinco salas do casarão. Dedicada à memória dos que combateram a ditadura militar, aos que foram mortos ou desapareceram durante o regime de exceção (1964-1985), a sala de número 5 é considerada o ponto alto do equipamento. Ali, podem ser vistas imagens de flagrantes de repressão, de manifestações de ruas e referências aos 51 mortos e desaparecidos políticos em Pernambuco ou de pernambucanos vítimas do regime militar fora do Estado.

Painel no Memorial da Democracia mostra nomes de personagens que lutaram e foram perseguidos pela ditadura

O Memorial da Democracia tem curadoria da socióloga Isa Grinspum Ferraz, também responsável pela curadoria do Museu Cais do Sertão (no Recife), e pela coordenação de conteúdos e roteiros do Museu da Língua Portuguesa (em São Paulo). Sobrinha do guerrilheiro Carlos Marighella, assassinado em 1969 por agentes do regime militar, Isa montou um roteiro para o Memorial da Democracia de Pernambuco em que o visitante conhece personagens importantes para a criação da ideia de um estado pernambucano, passando pelas lutas libertárias e contra a escravidão, a história e o propósito do Movimento de Cultura Popular (MPC) e enfrentamento ao regime de exceção implantado pelos militares em 1964. Ou seja, o percurso pelo Memorial conduz o visitante a uma “viagem” até o século 16. Diz ela:

“Esse é um memorial que é pioneiro no Brasil e que vem ocupar um lugar necessário no quadro educacional e político do país. O Brasil tem fraturas profundas que persistem desde o tempo da colonização e que tomaram diferentes formas e feições ao longo do tempo. O Memorial é uma afirmação de que é preciso olhar para nossa história reconhecendo nela os momentos dramáticos e aqueles luminosos. Os gestos de resistência e o desejo de uma construção de outra realidade para estarmos sempre atentos às ameaças à vida democrática e à liberdade que continuam a nos rondar”. 

Há, ainda referências históricas ao Sítio da Trindade como foco de resistência contra os holandeses, no século 17, assim como o fato de ter sido usado como sede do Movimento de Cultura Popular (MCP), que movimentava o Recife antes do golpe militar, e que tinha entre os seus expoentes o educador Paulo Freire, que seria banido pela ditadura. O MCP contava com adesão de artistas como Francisco Brennand, Abelardo da Hora, Ariano Suassuna. Porém todo o seu acervo foi destruído em 1964, quando o Sítio da Trindade – sede do MCP – foi invadido por tanques do Exército. Como também um resgate cultural, o projeto conta com réplica da escultura Torre Cinética e de Iluminação, de autoria de Abelardo da Hora, com oito metros de altura, a primeira grande escultura de grande porte feita no Brasil.

População estranha as novas cores do chalé do Sítio da Trindade: cadê os lambrequins da parte lateral do casarão?

Criado originalmente em 1961 e instalada na Praça da Torre, o monumento foi destruído em 1964 por censura artística, pelo Exército, por ter sido considerado subversivo e simbolizar a liberdade dos ventos. O local também conta com o Monumento que simboliza o processo de opressão e tortura, mas que também representa a luz e a esperança do espírito imortal é atemporal dos que lutam por liberdade, obra do escultor Jobson Figueiredo. ao Governo do Estado e à Prefeitura dar uma restaurada mais completa no casarão que abriga o Memorial da Democracia, que perdeu parte dos lambrequins que permanecem até hoje sem reposição. Já que é um Museu, vamos cuidar com mais carinho também da parte externa, na qual a nova pintura encobre detalhes bonitos da arquitetura do imóvel. O que é uma pena! Com entrada gratuita, o local é aberto para visitação de terça a domingo, das 10h às 18h.

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Os levantes dos camponeses e a triste memória da ditadura em PernambucoTexto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Letícia Lins (Acervo #OxeRecife) e Edson Holanda/PCR

 

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