Gisela Abad: design, cerâmica e kintsugi

Pensem em uma pessoa que não para de surpreender. Profissional reconhecida e premiada – com atuação diversificada na área do design – Gisela Abad decidiu mergulhar nas múltiplas possibilidades da argila. Como se não bastasse desenvolver marcas para empresas, estampas, projetos gráficos de livros, ela agora está às voltas com o… barro. A terracota, aliás, virou uma espécie de resgate de um sonho antigo, várias vezes interrompido e adiado.

Pelo que se vê, a espera valeu a pena. Suas peças utilitárias encontram-se à mostra na exposição Três Ceramistas, que marcou a reabertura do Museu do Homem do Nordeste, fechado desde o início da pandemia. São tão bonitas que podem ser tranquilamente usadas como objetos decorativos. Há aquelas com os azuis que nos remetem às nossas origens portuguesas. Outras, ganharam tons metais. Também há peças que “falam”,  pois ostentam textos de autores com os quais ela se identifica.

São  textos que mexem, também, com os nossos sentimentos, como os de Isabel Allende, Walter Hugo Mãe e Hector Abad (o sobrenome igual ao da artista é só coincidência). “Sou designer por definição, formação e atuação”, diz ela. “Mas sou também oleira, gosto de pensar com as mãos”, acrescenta. “Quando boto a argila no torno, deixo a mão pensar por mim”, explica ao #OxeRecife.  Achar o torno no Recife, aliás, foi quase um problema. Há cinco anos, ela já tinha tentado junto a vários artistas, até que descobriu o Ateliê de Cerâmica, de Dulce Costa, no Poço da Panela. Resolvido o problema do torno e forno, não tinha mais o que esperar.  Passou, então, a produzir.

Foi um retorno ao barro, três décadas depois das tentativas iniciais. “Minhas primeiras incursões na argila foram no Rio de Janeiro, quando já atuava como profissional do design, quando tive aulas de cerâmica. No início dos anos 1990, de volta ao Recife, decidi produzir peças artesanais utilitárias para restaurantes. Ninguém usava e as pessoas não tinham o hábito de utilizar cerâmica artesanal. Quem usava, tinha que optar entre as populares (das feiras) ou as mais sofisticadas, de Francisco Brennand. Entre as duas, havia um vazio”, lembra.

Na época, ela uma amiga (a arquiteta Cristiana Carvalho) viraram sócias na Casa Cerâmica.  “Tínhamos atravessado três planos econômicos e resolvemos arriscar. Viajamos, fomos a vários restaurantes de Pernambuco e Paraíba, e voltamos na maior felicidade, com muitas encomendas”, conta. Logo depois, estourava epidemia do cólera no Nordeste.  E  esforço anterior ficou em vão.  “As encomendas foram todas canceladas”. E o projeto da “oleira” foi adiado, sendo só agora retomado.  Por coincidência não no meio de uma epidemia do  Vibrio cholerae – como a do passado –  mas sim na pandemia do coronavírus, que eclodiu em 2020.

Mas ela não se intimidou com a crise sanitária, o isolamento social, o temor de ir às ruas, e foi em frente com a sua agora Cerâmica Abadia. E o resultado é muito bom,  como vocês podem observar nas fotos dessa página.

Além das peças utilitárias em exposição, há uma maior, conceitual, totalmente diferente das demais. É uma homenagem a Francisco Brennand (1927-2019) O formato lembra um ovo, o “ovo primordial”, tão presente na obra do artista, que costumava associá-lo ao princípio da vida e sempre uma inspiração para sua sua arte. A escultura é feita de pequenos caquinhos, que Gisela achou nos caminhos de acesso à Oficina do artista. Ela percebeu que os pequenos descartes de cerâmicas quebradas ou que não passavam pelo padrão de qualidade eram utilizadas para  tapar buracos na estrada de acesso ao ateliê, evitando-se, assim, atoleiros em tempos de chuva. Nas caminhadas pela Várzea, Gisela foi recolhendo os pedacinhos. E decidiu juntá-los para um tributo ao mestre, do qual se aproximou mais em 2004, quando foi convidada para reestruturar a marca da cerâmica, que havia sido desenvolvida por dois grandes mestres:  o pintor José Cláudio (pintor) e o designer Aloísio Magalhães  (1927-1982) com o qual Gisela inclusive já havia trabalhado.

Não foi fácil colar os pedacinhos, para reproduzir o formato de um ovo. Nas duas primeiras vezes que tentou, a peça desabou. Pois ao contrário do que parece, não se trata de uma jarra recoberta por caquinhos. Mas o esforço terminou dando certo. De pequenos pedaços, Gisela conseguiu fazer uma escultura oca, como um balão. Para juntar os cacos de cerâmica, ela apelou para o kintsugi, uma arte japonesa em que se usa laca misturada com pó de ouro, prata ou platina para recompor uma peça  de cerâmica quebrada. Só Gisela mesmo, para buscar inspiração na técnica nem tão conhecida pelos brasileiros.  Agora, uma curiosidade, veja, no vídeo abaixo, a curiosa história da reformulação da “marca com pedigree” da Oficina Francisco Brennand. Diga-se de passagem, uma marca linda, cheia de história e simbologia.

 

A exposição Três ceramistas – da qual participam, também,  Saulo Dubourcq e  Sérgio Bandeira – está em cartaz no Museu do Homem do Nordeste até outubro. Na lojinha da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), suas peças podem ser adquiridas a partir de R$ 30. E, nos links seguintes,  você confere informações sobre a própria Gisela, sobre outros ceramistas e sobre Francisco Brennand, cujas obras em áreas públicas do Recife carecem de cuidado.

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Serviço:
O quê: Exposição “Três ceramistas”
Quem são: Gisela Abad (designer), Saulo Dubourcq (arquiteto), Sérgio Bandeira (cirurgião dentistas), todos residentes na vizinhança do Muhne. A exposição inaugura um novo conceito, que é valorizar artistas que moram nas redondezas.  No caso da mostra atual, três ceramistas que possuem outras profissões.
Onde: Museu do Homem do Nordeste (Muhne),  na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj)
Endereço: Av 17 de Agosto, 2187, Casa Forte
Visitação: de terça a sexta-feira (10h às 16h); sábados, domingos e feriados (13h às 17h)
Quanto:  acesso gratuito
Onde comprar: Peças dos artistas estão disponíveis na lojinha do Muhne.
Contatos para Cerâmica Abadia: (081) 988893988 ou @ceramica.abadia (Instagram)

Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Divulgação /Cerâmica Abadia / Fundaj

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One comment

  1. Que trabalho bonito !
    Não só bonito mas fundamentado!
    A arte nos alegra, preenche, transforma!
    Parabéns!

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