Ao longo de minha vida profissional, como repórter, testemunhei o drama fome muitas vezes. Porém, houve quatro ocasiões que me deixaram marcas que jamais esqueci. A primeira foi cobrindo as secas, no Sertão, quando me defrontei, muitas vezes, com mulheres esquálidas arriscando a vida nas rodovias que cortam a caatinga, com cartazes com um apelo de socorro: “Fome”. Na segunda, foi no Sertão do Pajeú, quando vi uma família tirando os espinhos do mandacaru para fazer o almoço, pois não tinha mais o que comer nem dinheiro para comprar comida. Só não lembro se foi em Afogados de Ingazeira ou Tabira, respectivamente a 386 e 405 quilômetros do Recife.
Mas tenho certeza se não foi em uma cidade, foi na outra. O que, aliás, não era incomum durante as longas estiagens, quando não havia rede de proteção social no país. Já vira cenas semelhantes em Manari, aqui em Pernambuco, então considerada a cidade mais pobre do Brasil. Uma terceira ocasião foi em uma favela do Recife, quando uma mulher tinha um ovo para alimentar seis filhos. A iguaria “cresceu” na panela misturada com farinha e água. E uma quarta foi em Timbaúba, na Zona da Mata, quando trabalhava no jornal O Globo, em que decidi fazer cobertura de uma ação inusitada da prefeitura do município, localizado a 98 quilômetros do Recife.
É que diante do excesso de ratos na cidade, o poder municipal resolveu fazer uma campanha que se chamava “Rato no saco, filé no prato”. As pessoas que entregassem um quilo de ratos teriam como recompensa um quilo da iguaria bovina,igualmente inacessível aos pobres atualmente. Penso que foi em 1994. E quando estava na rua, um moleque me informou. “Não deviam caçar ratos, tem gente que precisa deles para comer”. Então, perguntei onde era que isso acontecia. E ele me mostrou um terreno, onde morava uma família em situação de absoluta miséria. E que sobrevivia com churrascos feitos com ratos mesmo, ratos de esgoto.
Cheguei no momento do trágico “banquete”. Documentamos a realidade (na época, com o fotógrafo Luís Morier), fiz a reportagem e a situação provocou muita polêmica e mobilização contra a fome no Brasil. O assunto virou notícia internacional. Logo em seguida, surgiam campanhas nacionais, programas sociais, porque a situação estava explícita, a fome era grande. O Brasil finalmente despertou para a situação dos miseráveis. Em 2021, tenho visto frequentemente no Recife, cartazes nos cruzamentos iguais aos que em via em viagens ao Sertão, durante os piores momentos das secas. Na nossa cidade, eles ficaram frequentes a partir da pandemia. Muitas gente que vivia do comércio informal ficou sem seus pequenos capitais para voltar a negociar.
Teve quem foi morar na rua, mendigar, esperar por ações sociais do governo e da sociedade civil para comer. Ou mesmo passou a catar comida no lixo. Quem ainda não presenciou, em alguma esquina da cidade, alguém ostentando um cartaz de papelão com a frase “tou com fome”? Do Ceará, há alguns dias, famintos “assaltaram” o caminhão da coleta de lixo em busca de comida.
A cena chocou os brasileiros e o mundo. O crescimento da miséria na Era Jair Bolsonaro no Brasil, aliás, tem sido noticiado pela imprensa de vários países. Em outubro, o Le Monde noticiou que nosso país “afunda na pobreza extrema”. E a situação de insegurança alimentar no País só faz aumentar, diante da crise da economia, do aumento do desemprego, dos preços que não param de subir. A proteína animal, por exemplo, já sumiu da mesa de muitos brasileiros. Há supermercados, onde o pacote de 800 gramas de leite em pó chega a R$ 40. Quase R$ 41,melhor dizendo (foto acima). E a carne bovina? Os preços dispararam.
No Brasil, hoje, há 14.400.000 de pessoas desempregadas. Estudos divulgados recentemente mostram que há 117.000.000 de pessoas que não se alimentam como deveriam e que 19.000.000 simplesmente não têm, sequer, o que comer. Estudos recentes indicam que somam 27 milhões os brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza. Infelizmente essa realidade começa a ser cada dia mais presente no nosso cotidiano, aqui também, no Recife. Pois tenho visto cenas ainda piores do que aquelas quatro que presenciei nos fatos anteriores aqui narrados. Infelizmente a exclusão social é cada vez maior e tende a aumentar. A inflação está subindo, chega a mais de dez por cento nos últimos doze meses, a maior desde o início do Plano Real. E todos sabem o que isso significa no bolso de quem tem menos ou quase nada. Enquanto os ricos se locupletam investindo no mercado financeiro para lucrar com o aumento das taxas Selic (7,2 por cento, a maior desde 2002), os pobres ficam cada vez mais miseráveis. Nesta semana, o fotógrafo Genival Paparazzi me enviou cenas por ele presenciadas no centro, de pessoas catando lixo para comer. Também tenho visto essa realidade com muita tristeza. É o exemplo do cidadão fazendo uma “refeição” em uma calçada da Avenida Rosa e Silva, depois de ter apanhando o lixo de um restaurante em um saco plástico (o de cor azul) depositado na calçada. E essa é uma situação de cortar o coração.
Sinceramente, onde isso vai parar, Meu Deus? E o capitão que governa esse país ainda teve cara para dizer no G-20 que a economia do Brasil vai bem. Parece até o país não tem inflação, que o PIB não está encolhendo, que a miséria não aumentou e que a fome não voltou a eclodir, com tendência a piorar, com a disparada dos preços.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Genival Paparazzi (cortesia), Letícia Lins (#OxeRecife) e Reprodução da Internet