Sessão Recife Nostalgia: Sítio Trindade, história, festa, verde e abandono

Quando eu era criança, o Sítio Trindade era quase uma extensão do quintal de nossa casa. Morávamos na Evaristo da Veiga, em Casa Amarela. E a meninada da Rua costumava se reunir, para brincar naquele que era o nosso “quintalzão”. Atravéssavamos a Rua da Harmonia, subíamos a ladeira Rosa da Fonseca, que chamávamos de Alto do Céu e… pronto, estávamos lá no nosso céu, no meio do terreiro, correndo por entre árvores frutíferas maravilhosas, curtindo a natureza, vendo o sabiá cantar. Lembro-me de jaqueiras, mangueiras, pés de azeitona do Nordeste (jamelão), sapotizeiros, pitombeiras, cajueiros. Onde eles estão?

Recordo que lá havia um laguinho, onde um jacaré costumava ficar à margem, tomando sol.  Pirralha, eu morria de medo do jacaré. Também houve uma época que havia lá muitos gansos. Uma vez, eles nos espantaram correndo, ameaçando avançar sobre nós. A molecada, em pânico, foi mais ágil e fugiu do ataque. O medo foi tão grande, que perdi a voz. Ganso é brabo! Depois, o Sítio Trindade passou a ser referência dos festejos juninos e também natalinos.  Foi o Sítio Trindade que me despertou para as manifestações da nossa cultura popular. Lembro que foi lá que vi conheci as rodas de coco, o bumba-meu-boi, um teatro de mamulengo, que vi o primeiro caboclo de lança. E foi lá, também, que vi o “rela-bucho” pela primeira vez, ao som da zabumba, da sanfona e do triângulo.

Naquela época, as quadrilhas não tinham o luxo das de hoje. Era todo mundo vestido de “matuto”, os garotos com camisa de xadrez, chapéu de palha, bigode desenhado com carvão. As meninas usavam roupas de chita, com muita  estamparia,  tranças artificiais coladas no  próprio chapéu. No final do ano, era uma grande festa ir ao Sítio Trindade. Lá, com certeza, íamos assistir a pastoris (religiosos e profanos), reisados, fandangos e outras manifestações folclóricas. As festas de rua do Sítio, no entanto, desde a gestão passadas que se limitam ao grande arraial junino. É lá que no mês de junho se encerra a Procissão dos Santos Juninos, uma das mais lindas manifestações do São João do Recife. Com a pandemia, nem isso, claro. A outra lembrança que tenho do Sítio Trindade, foi quando começou uma reforma, no século passado, e diariamente os jornais noticiavam achados: moedas holandesas, cachimbos, pedaços de louça portuguesa. Os achados arqueológicos têm tudo a ver. Veja porquê.

É que no século 17,  o hoje Sítio Trindade era o Arraial Velho do Bom Jesus, que funcionou como foco de resistência luso-brasileira contra o domínio flamengo entre 1630 e 1635, quando foi tomado pelos holandeses.  Depois, passou a ser ocupado pela Família Trindade Peretti, o que terminou levando o Sítio a ser conhecido pela população como Trindade. Possui um chalé em estilo eclético, do século passado. Em  1952, o Sítio Trindade tornou-se de utilidade pública, ficando um bom tempo abandonado. Em 1974 foi tombado pelo Iphan, e hoje é gerenciado pela Prefeitura. Antes da pandemia estive no Sítio Trindade, durante caminhada com o Grupo MeninXs na Rua. Tirando as árvores degoladas, os demais problemas não eram tantos.

Mas lá de novo estive recentemente. Fui para tomar vacina contra a gripe H1N1. Gosto daquele lugar.  Mas não gostei do que vi. O bucólico, histórico e belo espaço verde está sem as placas de sinalização turística. Não restava uma, sequer. Havia algumas ainda nos locais, mas com os letreiros apagados. Nem mesmo nas ruínas do forte de terra do século 17 havia indicação do seu significado. E muitas pessoas que lá vão, inclusive estudantes, não sabem do que se trata. Placa mesmo, só vi uma intacta, a do Obelisco, datada de 1922, lá afixada pelo Instituto “Archeologico”. O Sítio ganhou, também, as famigeradas lâmpadas de LED, uns lampiões pretos, mal confeccionados, que enfeiam a paisagem do Recife, e já começam a capengar em  praças e jardins.  E lá também. Já o belíssimo chalé que pertenceu aos Trindade Peretti deixa a desejar. Está sem boa parte dos seus lambrequins, tendo perdido, portanto, um bom  pedaço do seu charme. Só restam os da fachada. Os das laterais se foram. Quando haverá reposição?

Quem quiser passear pelo arvoredo, só tem agora uma entrada, a que dá para a Estrada do Arraial. Pois os portões da Estrada do Encanamento vivem eternamente fechados. O que é uma pena, pois quem precisa se deslocar a pé, do Parnamirim para Casa Amarela (ou vice-versa), perde oportunidade de fazer aprazível travessia sob a sombra das árvores seculares que nos restam.

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Texto e fotos: Letícia Lins / #OxeRecife

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