Livro revisita mulheres como Zuzu Angel, Eunice Paiva e Elizabeth Teixeira: horrores da ditadura

Desde cedo, sempre me interessei – e muito – por literatura sobre mulheres ou por mulheres: romances, cartas, biografias, memórias. Tanto é assim, que minha “biblioteca” possui uma prateleira dedicada a elas.  Tem  de Memorial de Maria Moura (Rachel de Queiroz) a Em busca de Targélia (Luzilá Gonçalves Ferreira); das memórias de Sarah Bernhardt às de Isadora Duncan; biografias de Anita Garibaldi, e Olga à de Rosa Luxemburgo, para ficar nas revolucionárias. Nem mesmo Eu sou Malala está de fora. Agora, chega mais um volume, que vai enriquecer a estante: As guerreiras da Esperança, de Aluízio Falcão. O livro, que contém 20 perfis de grandes mulheres, será lançado na noite dessa quinta-feira,  no Restaurante Ilha de Costa, no bairro das Graças. A partir das 19h.

O volume não se restringe a grandes mulheres brasileiras ou que viveram no nosso país. Passa em revista a vida de personagens femininas estrangeiras como Frida Kahlo (“Cores, vida e amores”), Eleonor Roosevelt (“Ela queria um capitalismo de face humana”), Billie Holiday (“O sentimento do Blues”), todas com vidas já bastante conhecidas. Ao todo, são abordadas as trajetórias de 20 grandes mulheres, das quais 16 são brasileiras. E vão de Clara Nunes (“Uma guerreira da canção e suas batalhas”) a Chiquinha Gonzaga (“O feminismo em tom maior”); de Patrícia Galvão, Pagu (“A musa gauche do modernismo”) a Tarsila do Amaral (“Ela pintou as cores do Brasil”); de Clarice Lispector (“Vida, literatura e outros mistérios”) a Fernanda Montenegro (“Resumo possível de uma vida grandiosa”).

Boa parte dessas personagens já tiveram suas vidas bastante exploradas, porém Aluízio Falcão imprime comentários pessoais a cada uma delas. E também algumas informações inéditas. O que chamou a atenção dessa leitora aqui, no entanto, são figuras que sofreram os abusos da ditadura implantada no país em 1964, quando homens e mulheres sucumbiram nas masmorras onde a tortura era praticada. A tortura que o atual Presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, não só aplaude como homenageia os torturadores, seus ídolos, como o General Ustra. O livro mostra as vidas de pessoas como as da estilista Zuzu  Angel (foto acima) e da advogada Eunice Paiva (“Duas mulheres de verdade”); Elizabeth  Teixeira (“Marcada para viver”), Anita Paes Barreto (“A voz feminina do MCP”), Naíde Teodósio (“A dama invisível das esquerdas”); de Dilma Rousseff (“A primeira mulher na presidência”).

Eunice com o marido, Rubens Paiva, assassinado brutalmente pela ditadura. O menino é o hoje escritor Marcelo Paiva

E o que essas mulheres têm em comum? Todas sofreram horrores com a ditadura. Zuzu Angel era estilista famosa, conceituada no Brasil e no exterior.  O “pecado” de Zuzu foi ter um filho, Stuart, que militava no Movimento Revolucionário Oito de Outubro (o MR-8). O rapaz foi preso em 1971, aos 25 anos. Foi torturado até a morte no Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, no Rio de Janeiro. Lá, diz o livro, teria sido amarrado com a boca ao escapamento de um jipe militar e arrastado até morrer asfixiado. A sua mulher, Sônia, foi presa, torturada e igualmente “desaparecida”. Zuzu não calou, passou a vida batendo na porta dos generais, em busca de notícia oficial sobre seu filho. Incomodou tanto que armaram para ela uma arapuca na qual terminou morrendo em um “acidente” de carro. O livro de Aluizio traz detalhes ricos dessa história triste.

Outra personagem que chama a atenção é Eunice Paiva, viúva do então deputado Rubens Paiva. Eunice e Zuzu estão, juntas, em um mesmo capítulo. Rubens foi  sequestrado, torturado e morto por agentes da ditadura em 1971, porém  Eunice só conseguiu o atestado de óbito do marido em 1996, após uma verdadeira peregrinação pelos corredores do poder. Revoltada com o que aconteceu com o marido – ele também chegou a ser presa – estudou Direito e passou a lutar em defesa dos direitos humanos. Para justificar a morte de Rubens, as forças da repressão inventaram versões  fantasiosas, inclusive que ele teria sido sequestrado por “guerrilheiros” e que morrera em um acidente. “A história esfarrapada do sequestro por guerrilheiros era para inocentar as autoridades pelo crime hediondo”, lembra Aluízio.

Outra figura abordada é Elizabeth Teixeira, viúva de Pedro Teixeira, líder camponês assassinado por “vaqueiros”, na verdade pistoleiros fantasiados a mando dos usineiros no interior da Paraíba. Pedro foi assassinado em 1962 – dois anos antes da eclosão da “gloriosa” –  porém a viúva passou a ser perseguida por dar prosseguimento à luta do marido. A vida e luta dessa mulher coragem virou o filme Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Seus onze filhos foram espalhados, e só depois ele soube que dois deles haviam morrido. As filmagens foram interrompidas, só retomadas após a anistia, quando a camponesa finalmente mostrou a cara para o mundo. Foi quando o Brasil conheceu a história dessa mulher coragem, que precisou ganhar a vida como lavadeira, vivendo na clandestinidade, enquanto os filhos se espalhavam pelo mundo para fugir dos horrores da ditadura.

Viúva e com onze filhos, Elizabeth Teixeira  deu prosseguimento à luta do marido assassinado, Pedro Teixeira.

O livro também conta a história quase desconhecida pelas gerações mais novas de Anita Paes Barreto que, usando o método Paulo Freire, alfabetizava adultos. Por esse “crime”, Anita foi presa por 17 dias pelo governo militar, por não ouvir conselho de amigas, já que o Movimento de Cultura Popular do qual  participava era  liderado por “ateus e comunistas”. Anita era católica, mas  se negava a deixar seus companheiros de MCP: “Fui convocada, tenho um papel, vou cumprir minha missão”. A  sede do MCP era o Sítio da Trindade, que fica no bairro de Casa Amarela, Zona Norte do Recife que foi invadida por tanques de gerra, enquanto militares roubavam materiais como máquinas de escrever e resmas de papel.  Outra figura proeminente, também abordada, é a cientista Naíde Teodósio, a qual tive oportunidade muitas vezes de entrevistar na Universidade Federal de Pernambuco, por suas pesquisas na área de nutrição. “Naíde foi uma subversiva, virtude atribuída a pessoas que pretendem substituir a ordem social vigente e tornar o mundo mais justo”, diz o autor. Também estive com Elizabeth Teixeira, mulher de aparência frágil, mas que lutava com a força de um furacão. Entrevistei-a, ao lado de Eduardo Coutinho, quando o filme sobre sua saga foi lançado.

Abaixo,  você confere outros livros sobre história, ditadura e período militar.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Internet

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