“Todos os livros do mundo”: Homero Fonseca conta a história da Livro 7 e do seu criador

Quem conhece o texto de Homero Fonseca, sabe como é. Flui leve, divertido, sem que o leitor sinta o tempo passar enquanto devora as linhas sem perceber. A gente começa a ler os seus livros, e não consegue parar. Títulos como Roliúde e Tapacurá: Viagem ao Planeta dos boatos estão aí, e não me deixam mentir. Homero é autor de nada menos que quinze livros, sendo que só dois são perfis biográficos. O segundo  constitui a sua obra mais recente, e mostra o perfil de uma figura bastante conhecida e querida no Recife. E que infelizmente foi vitimada pela Covid-19 em 2021: o livreiro Tarcísio Pereira, fundador da Livro 7 e pai dos meus três filhos: Joana Carolina, Juliana e Thiago. E também pai de Júlia, esta do segundo casamento.

Homero fez um apanhado geral da trajetória de “Seu Sete” – era assim que os amigos o chamavam – e resgatou detalhes de sua vida que até eu desconhecia, apesar de ter dividido teto com ele por quase vinte anos. Entre estas, as saborosas, porém nem sempre fáceis, passagens da infância, da adolescência e do início da vida na metrópole recifense. O livro Tarcísio Pereira – Todos os livros do mundo será lançado, em noite de autógrafos, a partir das 19h da quarta-feira (27/7), no Paço do Frevo, que fica na esquina da Rua da Guia com a Praça do Arsenal, no Bairro do Recife. Li o livro de uma tacada só, não consegui parar, embora muita coisa não seja novidade para mim, até porque contribuí com informações e fotografias do álbum de família, para o livro, que acaba de ser publicado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).  Com 308 páginas, a obra é resultante de um ano de estudo e pesquisa, em que o autor optou por fazer um perfil biográfico.

O próprio Homero era não só amigo de Tarcísio como também cliente da Livro 7. Ex-colega de trabalho – estivemos por algum tempo em uma mesma redação como repórteres – lembro de Homero, muitas vezes, elogiando o dote de Seu Sete” como livreiro. “Letícia, estive na Livro 7, e disse para Tarcísio que procurava um livro sobre tal assunto, mas que não lembrava do título. No mesmo momento, ele me aparece com o volume que eu precisava. Realmente um grande livreiro”, disse-me mais de uma vez.

A Livro 7 encerrou as atividades. mas a Troça Carnavalesca “Nóis sofre mais nóis goza” ia às ruas com Tarcísio até 2020.

Grande jornalista, muito cuidadoso com a apuração nos seus tempos de repórter, ele transferiu o mesmo zelo para os livros que, na verdade, funcionam como uma reportagem maior e mais profunda  (exceto as obras de ficção, como os romances, claro). No caso do livro em questão, o autor não só mostra a infância, os primeiros trabalhos de Tarcísio no estado onde nasceu  (Rio Grande do Norte) e no Recife, como também conta o início da então pequena Livro 7, os tempos de glória como a “maior livraria do Brasil”. E relata os motivos que levaram a empresa à decadência que findou no triste fechamento, o que abriu uma lacuna imensa na vida cultural do Recife.

Ao longo do livro, ele – claro – se preocupa não só em mostrar detalhes até da infância de Tarcísio, marcada pela instabilidade financeira e mesmo pela pobreza, como também as manias, o fascínio pelo futebol, as superstições (inclusive com o numeral 7), o uso constante da roupa azul, o boné que não tirava da cabeça. Para contar o que foi a Livro 7, no entanto, foi preciso contextualizar o momento em que a livraria foi criada, em plena ditadura, marcada pela censura. Momento em que noites de autógrafos lá realizadas chegavam a atrair não só os leitores e frequentadores de sempre, mas também agentes de segurança, que eram logo reconhecidos por clientes e funcionários. “Cuidado, tem tira e dedo duro por perto”, costumávamos avisar uns aos outros, para evitar comentários que pudessem comprometer os cidadãos, naqueles tempos de obscurantismo, em que a Livro 7 era uma espécie de luz no meio do breu.

A Livro 7 era o epicentro da vida cultural no Recife. Na foto, integrantes da chamada Geração 65.

Certa vez, em plena ditadura e regime bipartidário, o então Presidente do MDB, Ulisses Guimarães, chegou a exclamar: “O Recife tem três partidos, a Arena, o MDB e a Livro 7”. Na época, muitos títulos procurados pela esquerda eram vistos com maus olhos pelos órgãos de segurança, mas sempre estavam disponíveis nas prateleiras da Livro 7. Por conta disso, várias vezes Tarcísio foi chamado à Polícia Federal. Aí, duas curiosidades. Tarcísio sempre financiava shows, publicação, exposições através da confecção de faixas, panfletos, etc. Uma vez, os milicos mandaram um recado para mim. “Diga ao seu marido que todo mundo sabe que ele está contribuindo com fundo de greve dos professores” (não lembro se eram do estado ou da UFPE). Eu prontamente, respondi ao mensageiro. “Diga aos milicos que quem compra livro são os professores, portanto são eles que sustentam a livraria. Milico não gosta de ler”. Ponto final, não recebi mais recado. O livro de Homero também fala nos clientes que liam livros inteiros nos bancos da Livro 7.

E aborda alguns leitores ditos de “esquerda” que deram entrevista uma vez ao Diário de Pernambuco confessando que roubavam livros, como se isso fosse normal. Não, não era. Quem rouba, seja o que for, é ladrão. Pode até ser ladrão de livros, mas é ladrão sim. E estes, Tarcísio não perdoou. Já estava separada dele, mas lembro que ficou muito magoado com esses falsos amigos, cujos nomes estão na publicação e que não tiveram vergonha na cara de confessar o “crime”. Uma vez,  um agente da PF me chamou e informou: “Vocês dão o maior espaço à esquerda, porém nos inquéritos lá na PF  tem muita frase do tipo segundo o livro tal, que foi expropriado da Livro 7”. Ou seja, roubado também. Mas tudo isso já passou. E, tanto na direita quanto na esquerda havia “gatunos” conhecidos. E não foi por causa de alguns inescrupulosos “ladrões de livros” que a Livro 7 quebrou, como mostra Homero. O autor também aborda as grandes noites de autógrafos (como o da foto em Preto e branco), e a Livro 7 como epicentro da efervescência cultural por três décadas: “A geração 65, a Geração 75, a Geração 85”, como definia Tarcísio, referindo-se a movimentos literários do Recife.

Lembra, ainda, outros grupos como o Movimento de Escritores Independentes e as Edições Pirata. Informal, a editora publicou poetas como Jaci Bezerra, Alberto Cunha Melo, Arnaldo Tobias, Almir Castro Barros, Maria de Lourdes Hortas, Myriam Brindeiro, Rubem Braga, Kátia Bento e até…. Gilberto Freyre. A Livro 7 agitou a vida cultural do Recife entre os anos 1970 e 2000, quando sucumbiu à crise. No fim, é como diz o bloco que surgiu no meio dos intelectuais que frequentavam a Livro 7 e que preencheu uma lacuna no sábado de carnaval do Recife, quando O Galo da Madrugada ainda começava a surgir. “Nóis sofre mais nóis goza”.

O resto Homero conta.

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Serviço
Evento: Lançamento do livro  Tarcísio Pereira- Todos os livros do mundo (Editora Cepe)
Onde: Paço do Frevo (esquina da Rua da Guia com a Praça do Arsenal, Bairro do Recife)
Quando: 27 de julho (quarta-feira), em evento aberto ao público
Horário: 19h
Preço do livro: R$ 45 (impresso) e R$ 18 (e-book)
Atrações: Orquestra Harmonia,  Maciel Melo, Lula Queiroga, Nena Queiroga

Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Acervo Pessoal / Cepe

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One comment

  1. Parabéns pelo excelente artigo, Letícia! E parabéns a Homero Fonseca pela iniciativa de escrever o perfil biográfico de Tarcísio. Quem viveu os anos de funcionamento da Livro Sete — e é amante dos livros — pode se considerar privilegiado. Tal biografia é de leitura obrigatória!

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