O “Sequestro da Independência”: Como ditaduras e democracias exploram imagens da data cívica

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O Recife teve seu “Entardecer Patriótico”, para comemorar o Bicentenário da Independência, no último sábado. Na noite dessa terça-feira, a Orquestra Sinfônica do Recife ocupa o palco do Teatro Santa Isabel, com concerto gratuito para assinalar a data. Amanhã, tem festa cívica e Grito dos Excluídos em várias capitais brasileiras.  No  Rio de Janeiro, o Presidente Jair Bolsonaro tenta transformar a festa do Bicentenário em campanha eleitoral, apropriando-se dos símbolos da Pátria e até mesmo das manifestações cívicas, como o desfile militar.  Nada mais oportuno, portanto, do que exposição em São Paulo, que tenta não só recontar ou reinterpretar fato tão marcante do nosso país, como registra como os governos se apropriam de imagens da data histórica, de acordo com suas conveniências políticas ou ideológicas. E isso de 1 822 a 2022.

É que a Galeria Arte 133 montou a mostra “O Sequestro da Independência“, cujo objetivo é percorrer escolas em vários estados brasileiros. A expô foi concebida em diálogo com o livro  “O Sequestro da Independência – Uma história da construção do mito do Sete de Setembro” (Companhia das Letras, 2022), que  narra a construção imagética do mito do 7 de setembro. Os curadores da exposição –  de Lilia Moritz Schwarcz, Lúcia Klück Stumpf e Carlos Lima Junior são, também, os autores da publicação. Na mostra, além de obras históricas, o público tem contato com uma vitrine de objetos – incluindo alguns originais  – pertencentes a D. Pedro I e ao legado da República do Brasil.

A expô foi organizada a partir da reprodução de obras muito conhecidas (e outras nem tanto). E pretende iluminar as narrativas imagéticas em torno de nossa emancipação política em quatro diferentes épocas : durante o processo de independência, em 1822; por ocasião da comemoração de seu centenário, em 1922; no ano de 1972, quando a ditadura militar celebrou os 150 anos do evento; e neste ano de 2022. A intenção é demonstrar como se formam diferentes memórias visuais, e como cada contexto político “sequestra” significados para que se adequem ao momento e inflamem a imaginação. Para isso, se servem também os objetos históricos, tais quais um relicário em ouro e esmalte com a mecha de cabelos de d. Pedro I; uma moeda de 20 cruzeiros (do Sesquicentenário da Independência do Brasil; em ilustração: d. Pedro I com Médici, 1972); uma tabaqueira em ouro e outros tantos expostos em uma vitrine, com o propósito de ilustrar a narrativa visual que coordenou o período da Independência no imaginário brasileiro.

“Muitas nações se imaginam a partir de uma pintura, a qual, por sua vez, foi imaginada em diálogo com outras telas, muitas vezes estrangeiras. Aqui não foi diferente”, explica o trio de curadores. Mas, para eles, a tela do artista Pedro Américo, “Independência ou morte” (foto acima), de 1888, tem um sentido especial para a construção da nacionalidade do povo brasileiro. “De pintura encomendada pela Comissão construtora do Edifício-Monumento (futuro Museu do Ipiranga) em 1886, e apoiada por   d. Pedro II – numa forma de homenagem de filho para pai – foi virando apenas uma ilustração; um retrato fiel do 7 de setembro às margens do Ipiranga, progressivamente despida de seu significado original, autoria e contexto.”, ressalta o núcleo curatorial.

Batalha de Pirajá, de Caribé, também integra a exposição que vai percorrer o Brasil: “O Sequestro da Independência”

Entre os capítulos do livro giram em torno de seis constatações, três chamam a atenção: “1972: a comemoração ativa dos 150 anos de emancipação política por parte do governo ditatorial militar”, que usou isso como estratégia para desviar as atenções da violência que ocorria nas ruas do país. O segundo é “Outras independências pelo Brasil”, sobre estados do Norte e Nordeste brasileiro onde se travaram inúmeros conflitos armados durante esse período. Por isso, passaram a encomendar pinturas que destacavam a atuação de seus líderes locais nas lutas durante as guerras de Independência, rompendo com essa visão sudestina, palaciana, europeia e masculina do processo de independência.  E “Outros ecos do Grito de Independência“, no qual se mostra que a força e popularidade da tela de Pedro Américo no século XX e XXI foram tamanhas que ela virou uma espécie de imaginação nacional. Por isso, foi relida inúmeras vezes por propagandas, sátiras políticas e por artistas contemporâneos que igualmente trataram de “sequestrar significados”.

Por ter caráter educativo e revisionário da história do país, a intenção principal dos curadores e da galeria, ao idealizarem a exposição, é que ela percorra diferentes escolas pelos estados do Brasil, levando à educação primária e secundária uma visão plural e mais verossímil sobre a Independência da República, datada de 7 de setembro de 1822. Muito diferente do que foi retratado no quadro de Pedro Américo e em outras obras que D. Pedro encomendou para ilustrar este período, integraram os batalhões durante os conflitos armados mulheres, crianças, indígenas e negros escravizados, os verdadeiros “heróis da independência”.  Infelizmente, a Galeria fica em São Paulo, mas quem estiver por lá pode dar uma esticadinha e fazer visita guiada. A  mostra fica em cartaz até 24 de setembro. Vamos aguardar que passe por aqui, não é….

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Exposição “O Sequestro

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