Zé da Flauta lança livro “Tempos psicodélicos e outros tempos” na Passa Disco: 50 anos de estrada

Músico, compositor e produtor cultural que conheci, quando ainda usava calças curtas. É que há algumas décadas, meninos só usavam calças compridas quando iam a festas de casamento, batizado, aniversário. Até pouco antes da adolescência, todos usavam calças curtas, de cores sóbrias e muitos também tinham suspensórios. José Vasconcelos de Oliveira, o “Zé” de minha infância, é o hoje conhecido músico e produtor musical Zé da Flauta. E por que da minha infância? Porque os seus pais – os queridíssimos Lauro (já falecido) e Marilda Oliveira – eram amigos dos meus pais. E quando fiquei adolescente e depois, adulta, viraram também meus amigos. Mas foi já adulta que descobri o lado contador de “causos” de Zé. Sempre me relatava, de forma muito engraçada, as vivências em suas viagens, no convívio com artistas tradicionais (e de vanguarda), e também o choque de costumes com a cultura de outros países.

Depois, como repórter, o entrevistei por ocasião da indicação para o Grammy, com o CD Brasil Forró, que disputava o prêmio na categoria Tradicional Folk, em que ele teve que viajar aos Estados Unidos com Duda de Passira e Heleno dos Oito Baixos. Se não me engano, na década de 80. A viagem foi permeada de fatos inusitados, diante da inexperiência dos dois músicos  com a sofisticação do avião e da hospedagem em terras gringas. Basta dizer que um deles acionou Zé, na banheira do hotel, achando que o vapor da água quente era fumaça, e que o seu quarto estava pegando fogo. Também lembro que um deles, não sei se Heleno ou Duda, disparou a descarga ainda sentado na privada no banheiro do avião. E que o vácuo lhe deu um desconfortável puxão onde não devia. De outra vez, Zé entrava com uma cerveja em um festival internacional de música. Foi barrado pela polícia. Pediu que liberasse a bebida, já que muita gente estava entrando com “um baseado” e não era barrado. Diferente do Brasil, o policial canadense avisou: “O álcool potencializa a violência, mas a maconha relaxa as pessoas”

Éramos todos jovens: Zé da Faluta (de óculos) nos tempos que integrava a banda de Alceu Valença.

E é como bom músico, com uma longa estrada, experimentações e vivências curiosas, que Zé da Flauta decidiu escrever um livro. É o “Tempos psicodélicos e outros tempos”, que acaba de ser editado pela Cepe (Companhia Editora de Pernambuco) e que será lançado a partir das 19h dessa sexta-feira (10/03), na loja Passa Disco, que fica no Espinheiro. Não sei se aqueles causos constam do livro que ainda não li todo, mas se ele lembra só os feitos musicais, já deve ter material de sobra para um segundo título. De qualquer forma, o volume leva o leitor a uma “viagem” por fatos importantes ocorridos nos últimos 50 anos, na cena musical pernambucana. Alguns daqueles momentos já mereceram dissertações e teses, mas o autor faz o resgate com diferencial de quem participou ativamente deles. E o que é melhor de maneira leve e, sempre, claro, com humor, que é uma marca do verve de Zé da Flauta.

Em 300 páginas, os relatos do autor reúnem dados autobiográficos e da história política e cultural recente. O ponto de partida do livro, o primeiro do músico, são os efervescentes anos 1960, estendendo-se até a década passada. Entre os destaques, os anos 1970, período em que Zé da Flauta se junta a nomes como Lailson de Holanda (1952-2021) e Paulo Rafael (1955-2021), com os quais fundou a banda Phetus. Também fala em Lula Côrtes (1949-2011), Zé Ramalho, Flaviola (1952-2021), Alceu Valença. E lembra bandas como a icônica Ave Sangria, que representava o verdadeiro “Udigrudi”pernambucano. Este, um movimento influenciado pela psicodelia do festival Woodstock (“paz e amor”) realizado em 1969 nos Estados Unidos. A agitação musical em Pernambuco, na década de 1970, segundo Zé era “tão espontânea que não teve nem manifesto”. O livro é resultado de cerca de uma década de anotações. “A ideia estava na minha cabeça há muito tempo. Então, abri uma pasta no computador e fui anotando o que gostaria de escrever”, revela. A escrita se deu em curto tempo: dois meses. Zé da Flauta detalha que escreveu todos os textos entre outubro e novembro de 2020, em plena pandemia da covid-19. O propósito: mostrar o lado de alguém que viveu o movimento cultural pernambucano.

Zé da Flauta (de boné), Flaviola, Marco Polo, Paulo André (do Abril Pro Rock), José Teles, Bubuska e Paulo Diniz

Assim, ao abordar os fatos, o autor traz detalhes dos fatos vividos por ele e desconhecidos do público, a exemplo do que se passou no I Parto da Música Livre do Nordeste, festival que reuniu bandas de rock e Luiz Gonzaga no Teatro de Santa Isabel, no Recife, e atraiu a imprensa local e nacional. O evento prometia muito, diz Zé da Flauta. “Seria uma noite de experimentalismo e rebeldia, mas não se limitava a isso. Tinha também o objetivo de aproximar ainda mais a nova cena musical do Recife com o regionalismo”. Em meio aos gritos, performances e visuais excêntricos, no entanto, o Rei do Baião deixou o teatro de fininho. “É claro que ele (Luiz Gonzaga) estava bem assessorado. Ou seja, pessoas que o acompanhavam entraram no teatro para verificar o clima predominante e devem ter dito a ele algo do tipo: a previsão é de muitos raios e trovões”, descreve. No meio da “tempestade”, completa o autor, Flaviola – poeta, cantor, compositor recifense e um dos principais nomes da cena musical psicodélica local – fez uma performance explicitamente homossexual, o que rendeu ao artista um convite para, no dia seguinte, dar umas explicações à Polícia Federal. Vivia-se a ditadura militar (1964-1985).

Zé da Flauta com Ariano Suassuna, em 2003, no Recife. Dois grandes e engraçados contadores de “causos”

A experiência de Zé da Flauta como músico inclui trabalhos com o Quinteto Violado e Alceu Valença. Ao integrar o Quinteto, fez shows com Luiz Gonzaga, Dominguinhos e Anastácia, a Banda de Pífanos de Caruaru, Jackson do Pandeiro, entre outros. “Eram encontros maravilhosos. Eu estava conhecendo pessoalmente e tocando com artistas dos quais há vários anos eu comprava os discos e admirava bastante”, acrescenta. No livro, Zé da Flauta resgata sua participação nas gravações dos discos Coração Bobo, Cinco Sentidos e Cavalo de Pau de Alceu Valença, bem como em turnês internacionais e festivais, como Rock in Rio (1985). “Eu não só tocava flauta, também compunha e colaborava nos arranjos. Foi no disco Cinco Sentidos que gravei minha primeira parceria com Alceu”, diz. A música era Fé na perua. Depois vieram Escorregando no pífano e Rajada de vento.

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Serviço:
Lançamento do livro Tempos psicodélicos e outros tempos

Quando: 10 de março, sexta-feira
Horário: 19h
Onde: Loja Passa Disco
Endereço: R. da Hora, 345 – Espinheiro – Galeria Hora Center
* Entrada franca
Preços: R$ 70,00 (livro impresso), R$ 28,00 (E-book)

 

 

Texto:  Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Cepe / Divulgação

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