Americanização do Nordeste nos anos 1940: “Yes, nós temos Coca-Cola”

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Ele já nos deu o imperdível livro À Francesa – A Belle Époque do comer e do beber no Recife, no qual mostra a influência  da cultura da França na nossa gastronomia entre o século 19 e as duas primeiras décadas do século 20. E como ficaram marcas que perduram até os dias de hoje, inclusive nas nomenclaturas ainda tão corriqueiras em nossos restaurantes: menu, couvert,  maítre, à doré, confit, souté. Agora, Frederico Toscano nos presenteia com outra pérola, de deliciosa leitura, e que remete a tempos mais recentes, de 1930 a 1964.  Dessa vez abordando o contraste entre a fartura e a escassez, entre a opulência e a pobreza. De um lado, os Estados Unidos. Do outro, o Nordeste do Brasil, com maior foco no Recife. Principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, quando funcionou em nossa cidade a sede da Quarta Frota, na década de 1940.  Vem aí, Yes, Nós temos Coca-Cola. Que tem como subtítulo A fartura dos EUA e a guerra contra a fome no Nordeste.

Editado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), com  552 páginas, quase 70 fotos – recolhidas em instituições brasileiras e americanas  – a publicação será lançada às 18h30 da quinta-feira (12/05), no Rooftop da ABA Global Education, na Avenida Santos Dumont, Aflitos. A obra é resultante de minuciosa pesquisa para a tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP). E  mostra a “mudança de paradigma entre o francesismo e o americanismo”, que começa a acontecer, principalmente, na década de 1930. Quando o Brasil “é invadido por cada vez mais produções de cinema, pela música, pelo rádio e danças americanas”. E lembra: “Por ser muito difícil competir com o gigantismo da indústria cultural americana, os americanismos foram ficando sem concorrentes, de outros países”.

 

E aí aconteceu que os brasileiros incorporaram “muito da cultura e até um pouco da língua estrangeira, aos poucos deixando de lado os francesismos”.   O autor faz uma curiosa viagem principalmente ao tempo em que o Recife serviu de base naval dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, na década de 1940. Americanismo, fartura, carestia, escassez de alimentos, pobreza, a fome brasileira que, segundo Toscano, foi por muito tempo “escamoteada, disfarçada e escondida”. No livro, ele relata cenas  como as que aconteceram em Natal, “entre retirantes da seca que se amontoavam nas periferias das cidades, famílias inteiras passando a viver da riqueza do lixo norte-americano”. Eles recolhiam alimentos descartados pelos soldados para matar a fome. “Por vezes, surgiam até mesmo chocolates e talheres de prata que acabavam às mesas de multidões de famintos da capital potiguar”.

Mas nem toda comida para os pobres vinha de lixo descartado. A Quarta Frota possuía uma verba de caridade, que tinha por objetivo construiu imagem positiva dos soldados em áreas onde estavam alocados. Um 1944, por exemplo soldados americanos fizeram festa em um orfanato do Recife, com distribuição de brinquedos, guloseimas e…. Coca-Cola, como mostra a foto em que um oficial americano agrada a criança com uma colher de comida. O autor também resgata projeto de cultivo de hortas nos quintais, para redução da fome.

Do outro lado da pobreza, os recifenses iam pegando gosto pela Coca-Cola, uísque, brandy, coquetéis, canapés, cachorro quente.  Os jornais publicavam receitas de coquetéis preparados com bebidas americanas. Criou-se uma rede feminina de troca de informações com “postagens que eram visíveis a todos que lessem o suplemento, de maneira não muito diferente das redes sociais da atualidade”. Para o autor, foi mesmo a partir da segunda-guerra que aquele refrigerante conquistou o paladar dos moradores do Recife. “Com soldados norte-americanos para lá e para cá em ruas e bares, os jovens aprenderam a beber o refrigerante direto no gargalo”, destaca.

Para Toscano, a convivência inicial com os americanos era muito pacífica. “Ter os militares americanos ainda mais próximos , em solo nacional, era como ter astros de Hollyood saídos da tela e caminhando nas ruas das capitais brasileiras”. Ele afirma que os soldados, altos, loiros e fortes eram “como uma  propaganda viva do poder industrial americano e mesmo do próprio capitalismo”.

O Cassino Americano virou uma relíquia dos tempos da Segunda Guerra no Recife. Devia ser preservado.

Ou seja, para a época, ficava claro que “havia um país e uma cultura para servir de modelo para o futuro e esse país eram os EUA, terra de aparente fartura, inclusive alimentar”. Segundo Toscano, no entanto, o intercâmbio foi que “totalmente unilateral”, em época em que os americanos tinham um departamento chefiado pelo milionário Nelson Rockfeller  “para fomentar a cultura dos Estados Unidos na América do Sul e, principalmente, no Brasil”. Até a forma de se servir em jantares em casas de família mudou. Passou de à francesa (com lugar determinado para cada convidado) para o modelo de receber à americana. Pelo que se percebe, o livro é tudo de bom e curioso, tanto quanto o que aborda a influência da cultura francesa na  gastronomia do Recife. O Yes, nós temos Coca-Cola mostra  até bares que fizeram história no Recife, como o saudoso Savoy e o  Silver Star (foto abaixo), muito frequentado pelos militares americanos.

O Silver Star ficava no número 31 da Rua da Aurora, perto da Livraria Imperatriz. O homem de terno branco, Roberto Maçães, era um dos sócios.

Pelo que se percebe, o livro é tudo de bom e curioso, tanto quanto o que aborda a influência da cultura francesa na  gastronomia do Recife. Tem, também, um lado divertido, pois traz até documentos que eram secretos na época da guerra, mostrando como os soldados americanos deveriam se comportar no carnaval do Recife, “sem se ofender com as brincadeiras um tanto sem noção dos pernambucanos”. Eram aconselhados a se preparar para levar banhos de lança-perfume, só participar das festas se convidados e jamais retirar seus uniformes. Para os brasileiros, no entanto, no carnaval valiam as fantasias de soldados e , principalmente de marinheiros, estas últimas muito comuns até o início da década de 1960 entre os rapazes que iam para os bailes nos clubes sociais.

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Serviço
Evento: Lançamento do livro “Yes, Nós temos Coca-Cola”, de Frederico Toscano
Quando: quinta-feira, 12/05/2022
Local: Rooftop da ABA Global Education
Endereço: Avenida Santos Dumont, 300 Aflitos (a frente da ABA dá para a Av. Rosa e Silva, 1510)
Preço do livro: R$ 70 e R$ 28 (e-book).

Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Do livro “Yes, nós temos Coca-Cola”

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