Para mim – guardadas as devidas proporções e características – os caboclos de lança do chamado maracatu rural de Pernambuco representam uma identidade tão forte para o estado, quanto os soldados da guarda da família real para a Inglaterra. Com uma diferença: os nossos são muito mais imponentes e barulhentos, com suas brilhantes fantasias e chocalhos na cintura. Típico de Pernambuco, o maracatu rural é Patrimônio Imaterial do Brasil desde 2014.
Ao contrário do maracatu nação – de origem na cultura afro – o maracatu rural teve início entre os canavieiros da Zona da Mata de Pernambuco, onde se concentra a agroindústria açucareira. Ainda hoje, seus integrantes geralmente são homens que passam o ano trabalhando no corte de cana. E que, no carnaval, trocam as roupas maltrapilhas e escurecidas devido à fuligem das queimadas pelo brilho das lantejoulas e pelo colorido da cabeleira de celofane e das fitas de suas lanças.
Na segunda-feira de carnaval, eles se reúnem tradicionalmente na Ilumiara Zumbi, que fica na Casa da Rabeca, na Cidade Tabajara (em Olinda) onde a família Salu realiza uma grande confraternização dessas agremiações, que somam mais de 40 em todo o estado. Em 2020, a família Salu realizou a 30ª edição do Encontro Estadual de Maracatus Rurais. Longe dali, na na Mata Norte, no mesmo dia acontecia cortejo do Encontro de Maracatus Rurais de Nazaré da Mata. Foi a 20ª edição, com participação de 38 grupos. Na segunda, além de Nazaré da Mata e Olinda, eles estiveram também no Recife. Até o polo do bairro do Poço da Panela ganhou uma visita do Maracatu Rural Piaba de Ouro, que foi fundado pelo Mestre Salu (já falecido).
Em Nazaré da Mata, foi grande o número de de turistas para assistir o cortejo, que teve a presença do governador Paulo Câmara (PSB). O Grupo de Trilhas Andarapé levou um ônibus lotado do Recife. Entre eles o engenheiro Denaldo Coelho, coordenador dos grupos Preservar Pernambuco e Bora Preservar, criados para discutir a cultura e a proteção do patrimônio histórico do estado. Ele ficou encantado ao ver o Maracatu Feminino Coração Nazareno, até então inédito para muitos visitantes que estiveram ontem para ver o cortejo pela primeira vez em Nazaré, a 65 quilômetros do Recife. Afinal, é o único de baque solto formado só de mulheres no Brasil. Haja mulheres guerreiras!
É que pela tradição, os lanceiros sempre foram homens. O Coração Nazareno tem 16 anos e foi formado pela Associação de Mulheres de Nazaré da Mata. Com isso, as integrantes – lavradoras, em sua maioria – aprenderam outros ofícios como percussão, costura e bordado. E ficaram, claro, mais empoderadas, para usar um nome em moda hoje em dia. “Um espetáculo, estou encantado”, confidenciou Denaldo ao #OxeRecife, ao assistir o desfile das mulheres lanceiras. Ele e sua companheira, Suzana Abreu, me enviaram as fotos do maracatu feminino, lindo. O maracatu rural é também chamado de maracatu de baque solto, enquanto o nação (afro) é definido de maracatu de baque virado. E tanto um como o outro são muito fortes. Não só pelo espetáculo e pelos sons que produzem, mas também pelos seus significados.
O maracatu rural ou de baque solto difere do maracatu de baque solto (de origem afro), no ritmo, na formação, nas fantasias e no estilo de canto. Enquanto no maracatu nação as figuras principais são o rei e a rainha, no de baque solto esse papel é desempenhado pelo mestre, que enquanto canta as “loas”, o grupo silencia. Quando ele termina o refrão, os cordões respondem e música se inicia. Os cordões são formados pelos caboclos de lança, de grande efeito cênico, que complementam os sons dos instrumentos de percussão e de alguns metais com seus chocalhos. No maracatu nação mais autênticos, há figuras femininas na “corte”. Mas o comando geralmente é exercido pelos homens Joana D´Arc, do Maracatu Encanto do Pina (do Recife) foi a primeira a quebrar esse tabu. E exerce sua função com maestria, tendo criado, depois, o Maracatu Baque Mulher.
Veja a galeria de fotos enviadas por Denaldo e Suzana:
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Suzana Abreu e Denaldo Coelho (Cortesia/ Nazaré da Mata) e Diego Nigro (Divulgação / PCR/ Recife)