Livro mostra memória gráfica e afetiva de gradis, azulejos, pisos hidráulicos e cobogós de Olinda

“Olinda é só para os olhos, / não se apalpa, é só desejo. / Ninguém diz: é lá que eu moro. / Diz somente: é lá que eu vejo”. Os famosos versos são do poema Olinda (Do alto de um mosteiro, um frade a vê), de Carlos Pena Filho (1928-1960). Lembrei dele, ao folhear o maravilhoso livro Memória Gráfica da Arquitetura de Olinda, que a designer Renata Paes lança na noite da quinta-feira (27/10), a partir das 19h, no Casbah, que fica na Rua 27 de Janeiro, no Sítio Histórico da cidade. Renata inverte a lógica do poeta. Ela não só mora, como “apalpa”as diversas faces da estética da cidade, não só contemplando, fotografando e analisando fachadas, como também mergulhando no íntimo das residências para mostrar os pisos hidráulicos sobreviventes nos interiores do velho casario. E com isso, desnuda um pouco, também, o jeito Olinda de se morar.

Ao registrar no casario histórico para mostrar pisos hidráulicos, Renata Paes expõe, também, o jeito Olinda de se morar

A publicação é iniciativa da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). E desde já, passa a ser presença obrigatória nas estantes de arquitetos, urbanistas, historiadores, turismólogos e de pessoas apaixonadas pela cidade, que tem 487 anos e ostenta o título de Patrimônio da Humanidade. Olinda é linda. E, para nós, fica ainda mais linda, quando explorada em detalhes que podem passar despercebidos entre os próprios moradores e entre aqueles que a visitam de forma apressada. Filha de dois arquitetos preservacionistas – Antenor Vieira de Melo Filho e Nazaré Reis – Renata começou a ouvir, logo cedo  – e em casa – explicações sobre detalhes da arquitetura da cidade, onde reside desde criança. Observando-os, portanto com um olhar diferenciado daquele das pessoas comuns.

Cobogós são elementos presentes às construções, em Olinda. Servem de anteparo ao sol, deixando passar vento e luz

O livro tem 288 páginas e nada menos de 89 fotografias de casas de Olinda. Além disso, a autora disponibiliza imagens vetorizadas de cobogós (oito), pisos hidráulicos ou azulejos (16), gradis de ferro (nove). Pois são esses os elementos da paisagem arquitetônica de Olinda que norteiam a pesquisa da designer, que faz um verdadeiro inventário do que existe em vias conhecidas da cidade. Tais como as ladeiras 15 de Novembro, São Francisco, da Sé e Misericórdia. Ou ruas como a Prudente de Morais, Amparo, Boa Hora, São Bento. Na verdade, uma memória de  linhas, formatos, curvas, arabescos, cores. “Conhecer a memória gráfica da arquitetura de Olinda é um modo de salvaguardar o patrimônio, uma vez que o casario e seus artefatos decorativos representam uma parte relevante da memória visual da cidade”, diz.

Mesmo que as fachadas não estejam em bom estado, casario geminado ostenta azulejos que são relíquias

Renata descreve cada um dos elementos de estudo. No caso dos gradis, lembra que eles são de dois tipos no Brasil, “de ferro fundido ou de ferro forjado”.  Informa que, em Olinda, “podem misturar módulos, peças simples, e peças complexas, gerando uma gama infinita de composições totalmente diferentes uma das outras, com desenhos livres”. Já o cobogó – tão comum em Pernambuco, onde foi inventado – é inspirado nas treliças de madeira (maxarabis e gelosias) herdadas da cultura árabe.

E passou a ser usado em Olinda a partir de 1935, em muros, varandas, cozinhas, fachadas, banheiros. Ainda muito presente na cidade, o cobogó é sábio. Pois em nosso clima tropical, serve de anteparo contra o sol, porém sem impedir passagem do vento e da luz. Outro elemento de estudo é o azulejo, o que chama mais atenção ao turista comum, no casario de Olinda. O revestimento chegou na cidade histórica no século 19 e sobrevive, hoje, em muitas fachadas. Tem função não só decorativa, como protege o imóvel da umidade e também do aquecimento das paredes durante o verão, contribuindo para reduzir a temperatura interna do imóvel. Os azulejos chamam tanto a atenção, que há passeios turísticos só sobre eles, como os organizados pelo historiador, turismólogo e guia turístico Bráulio Moura.

Os ladrilhos registrados no livro mexem com nossas memórias afetivas, porque lembram o piso das casas dos avós

Também chama a atenção, o mostruário de ladrilhos hidráulicos, ainda muito presentes nos cômodos das residências da cidade.“O ladrilho hidráulico surgiu na metade do século 19 no sul da Europa, chegando ao Brasil em meados de 1820, como substituição à pedra, principalmente ao mármore, às lajotas, aos pisos de madeira ou mesmo para cobrir o piso de chão batido”. Ela descreve como se fabrica o piso hidráulico, enumera cores, formatos e como os moradores de Olinda se relacionam com esse tipo de piso. Sinceramente, o “charme” dos  porcelanatos modernos e dos pisos de granitos polidos e escorregadios (que até provocam escorregões em dias de chuva) nem de longe se comparam à beleza dos pisos hidráulicos decorados, que víamos nas casas dos nossos pais, tios e avós, e aina hoje presentes em imóveis mais antigos. Diz a autora:

“Alguns moradores que viram as fotos (do livro) reconheceram ali  elementos que fizeram ou fazem parte de suas vidas, como o piso da casa da avô, o azulejo da casa onde cresceu  ou a casa da grande onde mora. Uma contribuição desses registros é que eles possam vir a se tornar um instrumento para salvaguardar essa memória afetiva da cidade, ajudando a preservar suas características arquitetônicas”.

Renta repete um importante ensinamento do pai: “Só defendemos aquilo que conhecemos e nos afeiçoamos por decorrência”.  Viva, pois, a Olinda, a Renata Paes por nos presentear com um livro que tem tudo para se transformar em relíquia para as próximas gerações. E parabéns à Cepe por publicá-lo.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Thiago Duarte / Memória Gráficada Arquitetura de Olinda

 

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