Entardecer Patriótico: Festa impecável e musical para comemorar o bicentenário da Independência

Em 2000, fui escalada pelo jornal (O Globo), em que eu trabalhava como correspondente no Nordeste, para fazer a cobertura jornalística das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, que eu considero um dos trabalhos mais importantes de minha carreira de repórter. Passei um mês no Sul da Bahia, acompanhando os preparativos da grande festa de 22 de abril. E, logo ao chegar, optei por lutar por espaço para “Os outros quinhentos”, como eram chamados os indígenas, os afrodescendentes e os sem terra que marcaram presença nos festejos, para cobrar por uma verdadeira independência do Brasil e de seus povos. Pelo clima que eu percebia, o dia da grande festa iria dar confusão. E deu. Por conta das forças policiais da Bahia, o que seria uma grande comemoração histórica virou quase uma tragédia: bombas, tiros, índios guerreiros – como os xavantes – chorando, diante de uma repressão sem sentido. Nunca esqueci de uma frase dita por um cacique: “É preciso muita luta, mas daqui a 500 anos, isso muda”. Jamais ouvira algo tão doloroso, partindo daqueles que eram os verdadeiros donos dessa terra, quando os colonizadores chegaram para nos espoliar.

Festa cívica e cultural com bandas e orquestras gigantescas levaram público ao delírio no Forte do Brum.

As cenas violentas foram tão tristes que, por semanas, pareceram virar tatuagens em minhas retinas, porque não se apagavam da memória. Lembro que no dia posterior ao massacre, fui bem cedo à praia, sentar na areia para fazer uma coisa que não tivera tempo no dia anterior: chorar. Chorar pelos índios, pelos afrodescendentes, pelos sem terra. Por mim, também, de tanta tristeza com o meu país. Lembro eu não participava de protesto, apenas atuava como repórter, e que o famigerado comandante da Operação 500 anos, à época Coronel da PM da Bahia, chegou a tentar me arrastar pelo braço para um camburão, somente porque eu estava fazendo meu serviço. Para minha sorte, havia um juiz federal do meu lado – tão indignado quanto eu com os acontecimentos – que ameaçou prender o coronel PM. “Solte a jornalista, eu lhe darei voz de prisão”. O coronel deu um puxão que quase arranca  meu braço e me fitou com olhos de sangue e ódio, ao me libertar. E eu, que só pensava no material que deixaria de mandar para o jornal se detida, me senti vitoriosa e amparada pela justiça. À época, nem contei esse fato publicamente, porque nem lembrei do individual diante da confusão  coletiva, armada nas ruas e que terminou por escandalizar o mundo.

Isso tudo, no entanto, é para dizer que fui no sábado ao Entardecer Patriótico, realizado em frente à Fortaleza do Brum, para comemorar o bicentenário da Independência. A associação entre os festejos das duas datas foi inevitável. Quando lembrei da “guerra” dos 500 anos do Descobrimento, e a festa dos 200 da Independência, sinceramente, me senti no céu. O evento não teve um só arranhão, mesmo nesses tempos sombrios, onde cores e símbolos da Pátria são indevidamente apropriados pelo ex-capitão, como se a ele pertencessem. Para minha alegria, durante toda a cerimônia, entre bandeiras, camisetas amarelas ou verdes, não houve uma só manifestação  do tipo“Viva Bolsonaro”. E ainda bem que ele não apareceu, porque se o fizesse, estragaria a festa cívica e cultural, transformando-a em trampolim eleitoreiro.

Estão de parabéns todas as instituições que participaram da organização, à frente as militares – Exército, Marinha, Aeronáutica e até PM e Corpo de Bombeiros – que formaram uma imensa banda, com músicos de todas essas armas, para execução de hinos como o do Brasil, o da Independência. E também de clássicos  do nosso cancioneiro . Não faltaram Aquarela do Brasil (Ari Barroso), Frevo Mulher (Zé Ramalho), Nino (Maestro Duda). E, exceção para um sucesso não brasileiro: Fanfarra Olímpica (de John Williams, de Star Wars e Jaws), que marcou a abertura dos Jogos Olímpicos de 1984. A cada música, o Forte ganhava projeções da Bandeira, do Brasil, das florestas, dos rios, do frevo, dos índios, das revoluções e de nossos heróis. Foi uma tarde não apenas cívica, mas cultural. Teve até declamação de A Pátria, de Olavo Bilac (1865-1918). E muitas das projeções não foram só fotografias, mas também xilogravuras. Mais nordestinas, impossível. As imagens projetadas ressaltaram, também, a participação de Pernambuco nos movimentos libertários, incluindo a Junta Governativa de Goiana, a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador.

O “Entardecer Patriótico” passou em revista a história do Brasil e as revoluções patrióticas de Pernambuco (G. Gadelha)

Por fim, enquanto saíam os músicos das bandas militares e o palco era preparado para a chegada da Orquestra Sinfônica do Recife e da Orquestra Criança Cidadã, o sanfoneiro Beto Ortis executava o Hino Nacional,  no caminho entre Forte , e rumo o  gigantesco palco. A orquestra transformada em uma só, com mais de 200 músicos, contou, também, com representantes de todas as armas lá presentes. Sob a regência do Maestro Renato Acioly, brindou o público com as Bachianas Número 4 (Villa Lobos),  Asa Branca (Luiz Gonzaga), Lamento Sertanejo (Dominguinhos), Suite Nordestina (José Ursulino da Silva, o Maestro Duda outra vez). O compositor, aliás, foi uma das estrelas da noite, por várias vezes homenageado. E por fim, uma apoteótica execução de O Guarani  (de Carlos Gomes), em que os momentos mais emocionantes foram acompanhados com tiros de artilharia. Como sempre, Fabiana Pirro deu show, na apresentação do evento. De parabéns, portanto, Exército, Marinha, Aeronáutica, PM, Corpo de Bombeiros. E ainda o Governo de Pernambuco e a Prefeitura (que cedeu seu estacionamento), o Porto do Recife que ajudaram no evento.

De parabéns, também, a população por não se aproveitar do verde amarelo e dos símbolos da Pátria para fazer proselitismo político, coisa que o ex-Capitão precisa aprender. Até porque, os mandatários passam. Mas o Brasil fica. É eterno.

Veja o vídeo com um pequeno trecho do Entardecer Patriótico

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Texto, fotos e vídeo: Letícia Lins / #OxeRecife e Grinaldo Gadelha (cortesia)

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