Usina de Arte em Água Preta: Como sair da “moagem” da cana para a de cultura

A comparação não é mera coincidência. O próprio guia que nos acompanha, Tales Clementino, informa que a Usina de Arte é o “Inhotim pernambucano”. Pois foi do Inhotim que veio a inspiração para transformar a tradicional Usina Santa Terezinha em Usina de Arte. A indústria parou com a moagem da cana em 1998, quando grande parte do parque açucareiro pernambucano entrou em crise, e muitas indústrias passaram a ser sucateadas e a ter o maquinário vendido como ferro velho. No caso Usina de Arte, a predatória lavoura açucareira deu lugar à recuperação da Mata Atlântica. E o manejo de enxadas, foices, facões dos camponeses foi substituído pela produção de obras artísticas.

“Os próprios proprietários da Santa Terezinha, Ricardo e Bruna Pessoa de Queiroz, dizem que se inspiraram no Inhotim, para criar a usina de Arte”, afirma Thales, filho de agricultores que moravam em engenhos da antiga indústria. Ele hoje se inseriu no novo mercado de trabalho criado com a nova “usina”, que funciona às margens do rio Jacuípe, no município de Água Preta, a 130 quilômetros do Recife, já na divisa com Alagoas. E Instituto Inhotim, para os que não lembram ou nunca o visitaram, fica no município de Brumadinho, a 63 quilômetros de Belo Horizonte. E vem a ser “somente” o maior museu a céu aberto do mundo. Não fosse ele, provavelmente a fama de Brumadinho ficaria por conta só da grande tragédia da avalanche 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos provocada pelo rompimento de uma barragem da Vale de Rio Doce, que deixou um saldo de mais de 270 mortos.

O Museu Inhotim contribui para que Brumadinho seja visto de outra forma. No caso da Zona da Mata de Pernambuco – onde se concentra a agroindústria açucareira – a tragédia ocorreu de outra forma. O plantio de cana destruiu a Mata Atlântica, implantou inicialmente um regime de trabalho escravo (e posteriormente semi-escravo),  estampou o abismo social através da casa grande e da senzala,  “cultivou” a concentração de renda, e quase perpetuou a cultura do feitor e do senhor de engenho. Com o surgimento das ligas camponesas e a posterior organização sindical com suas campanhas salariais, os lavradores passaram a ter vida melhor. Porém com a falência do parque açucareiro, instalou-se um novo drama social: a fome provocada pelo desemprego. A Usina Santa Terezinha, por exemplo, chegou a ter 100 quilômetros de via férrea particular, 21 locomotivas, 57 engenhos. Tinha 6 mil trabalhadores no corte de cana, o que significa dizer que dela dependia a sobrevivência de cerca de 30 mil pessoas, levando-se em conta uma proporção modesta de cinco pessoas por família (entre crianças e adultos).

Inspirada em onomatopeia das águas, José Spaniol indealizou sua obra Tiummmtichan: integração com a natureza

Hoje, a indústria está parada, virou um elemento da paisagem, e fabrica cultura. Além disso, os canaviais foram substituídos por plantas nativas da Mata Atlântica, que começam a brotar na área de 33 hectares antes ocupados exclusivamente pela monocultura açucareira. Antes, todas as espécies florestais haviam desaparecido. Agora começam a retornar. Já somam 600 as espécies de mais de 10 mil mudas plantadas no seu Jardim Botânico. Muitas  inclusive já adultas. Ou seja, a Usina Santa Terezinha mudou totalmente de foco ao virar Usina de Arte.

Hoje o que está em questão são a sustentabilidade ambiental, a inclusão social, e a diversidade cultural e biológica. Às margens do Rio Jacuípe, o Jardim Botânico da Usina de Arte conta com três lagos, belos jardins e 37 obras de arte, que incluem a polêmica Diva (de Juliana Notare), a onomatopeica Tiummmtichan (de José Spaniol), a engajada Tinha que acontecer (Flávio Cerqueira), a moderníssima Banquete da Terra (Denise Milan), a Renascer (de Ronaldo Tavares, foto vertical) e a Tempus Fluvium (José Rufino).

O trabalho de Ronaldo e o de José Rufino chamam atenção pela utilização de  peças mecânicas da própria usina e que caíram em desuso.  Ambos são artistas locais. Ronaldo fez uma árvore (Renascer), com roscas, molas, parafusos. Já  José Rufino ocupou o antigo hangar da Usina, onde ele aproveitou materiais da indústria (e do campo), além de sucatas, para inspirar a sua arte que mostra, também, o poder  (histórico) do usineiro, as ligas camponesas e outras faces da nossa história açucareira. Em um painel que ocupa toda uma parede, ele usa instrumentos dos lavradores como foices, estrovengas e facões para lembrar as históricas Ligas Camponesas, que tanto agitaram os canaviais no século passado.

O aproveitamento de árvores mortas deu origem a bancos de madeira que parecem ter chegado da mata. E eu….

Entre os artistas que possuem lá suas obras – em integração com a natureza – estão Paulo Bruscky, Daniel Santiago, Márcio Almeida, Marcelo Silveira, Paulo Meira, Carlos Melo, Juliana Notare (PE); Hugo França e Daniel Acosta (RS); Laís Myrnna (MG), entre outros. A obras decorrem, em maior parte, de residências artísticas.  No Jardim Botânico, funcionam  outros empreendimentos, como Pesque-Pague, restaurante, hospedaria, pousadas. Na parte cultural, há residências artísticas, escolas de música, festivais.

O que contribui não só para estimular o empreendedorismo local, como para quebrar a tradição secular de que a Zona da Mata deveria eternamente viver da cana. Nas terras da Usina de Arte, vivem hoje 20 famílias que aprenderam a conviver com a nova economia. A Usina de Arte terminou se transformando em um local turístico, depois de começar a “moer” para produção não de açúcar, mas de cultura.

Na cidade, pequenos negócios – como caldo de cana, artesanato, comércio, restaurantes  – começam a vicejar em função do novo movimento de turistas registrados em Água Preta. E isso é bom. O  município se situa  na Mata Sul, região que ficou conhecida pela geração de homens de pequena estatura, devido ao problema secular da fome. O fenômeno, estudado e denunciado pelo nutricionista Nelson Chaves(1906-1982) ganhou manchetes no século passado. Uma realidade que, felizmente, sofreu mudanças e que pode mudar mais ainda com a economia criativa.

Eu fui com um grupo do Andarapé Trilhas. E o passeio valeu!

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Serviço
O que: Usina de Arte
O que é: Usina produtora de açúcar, que passou a produzir cultur
O que ver: belas paisagens e quase 40 obras de arte integradas à natureza
Área: 33 hectares
Quando funciona: Diariamente até 18h
Onde fica: Rodovia PE 99, KM 10, Usina Santa Terezinha, Água Preta
Ingresso: Entrada gratuita
Se preferir com guia: Tales Clementino, (82) 9993033344

Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Letícia Lins e Grupo Andarapé Trilhas

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