“Se eu soubesse escrever”…

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“Se eu soubesse escrever, minha vida dava um livro”. Era assim que Dona Daluz, lavradora e analfabeta costumava falar, ao referir-se à própria vida. Achava que se tivesse o dom da escrita, sua saga renderia uma boa história. E rendeu, inclusive com parte da frase como título. Nascida em um sítio no interior de Pernambuco, Daluz criou 18 crianças, doze filhos e seis enteados. No pequeno terreno onde morava com a família, cultivava flores e hortaliças, de cuja venda  extraía o dinheiro para comprar o material escolar da prole, tão numerosa.  O marido achava que a meninada devia trabalhar, como era comum naquele tempo, nas  áreas rurais do Nordeste. Mas Daluz, mesmo sem saber ler, achava que as crianças só teriam futuro se frequentassem a escola.

“Só não estudou mais quem não quis, não foi por falta de incentivo”, afirma Maria José de Barros, filha de Daluz. “Quase todos fizeram universidade e alguns, como é o meu caso, até têm pós-graduação”, conta. Maria José é professora da rede estadual de ensino no município de Carpina, localizado a 56 quilômetros do Recife. Mas é também uma escritora. E juntamente com os irmãos fez o que a mãe sonhava em realizar um dia:  contar, por escrito, a saga de Daluz. O livro esgotou-se rapidamente, teve uma segunda edição com outro título Daluz, costurando as linhas do tempo. E também esgotou rapidamente. Agora está a caminho de uma terceira edição, revisada e ampliada. “É incrível como esse livro vende”, surpreende-se Maria José. Também, pudera… É uma bela de uma história.

A mãe, com certeza, era uma figura incrível: cultivava flores. Quando não tinha naturais, aproveitava materiais – do papel à palha de milho – para confeccionar peças decorativas, que tanto podiam ser usadas nas festas da família quando para enfeitar o altar da igreja. Se Daluz fosse viva ficaria muito feliz, ao saber que a filha escreveu o que ela gostaria de ter contado. Além de incentivar o estudo dos filhos e enteados, Daluz costurava. E era uma grande artesã. “Naquele tempo, de forma intuitiva, ela já entendia a importância da reciclagem de materiais”, conta. Maria José, por sua vez,  não ficou só no primeiro livro: tem quatro outros, dois de poemas e dois infantis. E estes que fazem o maior sucesso entre as crianças.  Era uma vez uma peixinha As estripulias de Mané Gostoso.  São duas  histórias comoventes, ambas de forte conteúdo humano.

Era uma vez uma peixinha foi inspirado em uma tragédia real, na qual morreu uma sobrinha de Maria José, e quatro pessoas da família ficaram feridas. Foi há onze anos, quando a família no interior de um carro foi abordada por um assaltante no Recife. Em ação desastrada, uma viatura da Polícia Militar disparou contra  os bandidos, o que custou a vida da menina. Como ela gostava muito de nadar, a tia inspirou-se na  dramática história para homenagear a “peixinha”.

O drama da criança virou notícia nacional  e comoveu o Brasil. “Ela tinha longos cabelos, que no livro funcionam como suas barbatanas”, diz. “É a mesma história de minha sobrinha, mas em uma grande metáfora”. No livro, a protagonista também morre, mas aí aparece um peixe anjo com um pó mágico que transforma a vítima e protagonista em uma pérola linda. E eterna.  Dudalina é o nome dela.

As estripulias de Mané Gostoso fala da exclusão, inclusão, pobreza, sonho, cultura, religiosidade. O protagonista da história é Gabriel, um menino que mora na Rua da Linha, no bairro de São Sebastião, em Limoeiro. A Rua da Linha, por ser muito pobre e periférica, é marginalizada ainda hoje, naquela cidade, localizada a 77 quilômetros do Recife. Um dia, Gabriel vai com a mãe à festa religiosa de São Sebastião e encontra um artesão, vendendo o Mané Gostoso, brinquedo popular comum no Nordeste.

Ele pede um à mãe. Mas esta não tem dinheiro. Com pena do garoto, o artesão o presenteia com uma peça.  Gabriel brinca dia e noite com o Mané Gostoso,  mas este dialoga com a criança que está “feliz” com o brinquedo, enquanto ele próprio, o Mané, está “preso” no brinquedo, ao qual é amarrado por cordões . Gabriel, então, corta o cordão para liberar o boneco, e leva uma bronca da mãe. O boneco, pede então para ser amarrado de novo  porque só é “feliz fazendo outra pessoa feliz”. O livro ainda fala da inclusão, ao incluir uma criança cega na história. Maria José não coloca suas obras à venda nas livrarias. “Cobram muito caro, até 50 por cento do valor, só para expor o livro”, reclama. “Então, para onde vou, levo debaixo do braço e vendo muito bem”, comemora.

No caso As Estripulias de Mané Gostoso ela destina 40 por cento da renda ao  Centro de Criação Galpão das Artes, que faz trabalho de resgate social e valorização da cultura popular nacionalmente reconhecido, no município de Limoeiro. No Galpão, Daluz é homenageada, nomeando  no menor museu do mundo, ali instalado, no qual há um acervo de brinquedos populares do Nordeste. “Dona Daluz foi minha vizinha e era também uma artesã admirável”, conta Fábio André de Andrade e Silva, idealizador e Presidente do Galpão das Artes. E acrescenta: “Com sua voz mansa, dava seus ensinamentos  e eu apreciava as confecções de suas flores de palha de milho, que só faltam falar de tanta beleza”. E viva Dona Daluz para dar origem a tanta história bonita!

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos:  Divulgação

5 comments

    1. Oi, Ana. Maria José não vende em livraria. Caso vc queira algum, o telefone dela é 999933176. Mas o livro sobre Daluz está esgotado e filhos preparam uma nova edição.

  1. Puxa, Letícia que texto emocionante! As história e estórias deslumbra qualquer criatura. Belíssima matéria. Despertou-me o desejo imediato de visitar Limoeiro, mas, a pandemia perdura. Letícia exitosa profissional, Daluz, bela lembrança, eternizada pelas mãos de uma grande escritora.

    1. Quem sabe, após a pandemia, a gente não organiza um passeio até lá. O Galpão das Artes, ao qual ela cede direitos autorais de um dos seus livros, foi uma grande surpresa para mim, pois lá é feito um belo trabalho.

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