Parem de derrubar árvores (365). Jaqueira histórica degolada movimenta a Várzea por tombamento

Quem conhece essa jaqueira, localizada na Várzea, sabe o quanto  ela é importante para aquele bucólico  e ainda não verticalizado bairro da Zona Oeste do Recife, no passado ocupado por  canaviais,  casas grandes e senzalas. A planta tem grande significado histórico. Mas nem isso a poupou da motosserra insana, pois há alguns dias, faltou pouco para que ela se transformasse em mais uma vítima de arboricídio, como mostra a foto acima.  A nova degola revoltou os moradores do bairro, que agora querem o seu tombamento. É que a planta é símbolo de uma bela história de amor (vivenciada entre um engenheiro francês e uma escravizada  no século 19). E também representa a memória da liberdade da população que vivia cativa, em regime de trabalho forçado nos engenhos de um Recife ainda rural e escravocrata.

A árvore é a mesma que está na foto abaixo, em preto e branco, onde aparece frondosa, no terreno onde foi  plantada, no século 19, ao lado da casinha branca do casal, que foi demolida no início do século 21. Atualmente a planta vive comprimida entre o muro e um prédio do Conjunto Habitacional Morada Verde, na Rua Mário Campelo, na Várzea. Durante a construção do condomínio, a jaqueira quase foi vítima da motosserra insana e de arboricídio. Mas sobreviveu devido a apelos e  saudáveis protestos dos moradores, que queriam preservar a memória  do bairro.  A história de amor entre o engenheiro (loiro e de olhos azuis) e a negra (escravizada e analfabeta) ainda hoje alimenta o imaginário da população da cidade. Ele era Julio Adurand, e veio da Europa para trabalhar na implantação da primeira usina a funcionar em Pernambuco com caldeira a vapor, quando os engenhos ainda eram do tipo banguê. E logo se apaixonou por Feliciana, que servia no refeitório dos funcionários graduados da Usina São João da Várzea, da qual ainda restam algumas ruínas naquele bairro.

Foto mostra a jaqueira, ao lado da casinha de Júlio e Feliciana. O antigo sítio tem hoje um habitacional

Adurand terminou  se casando com a escrava do patrão, o que foi um ecândalo para os padrões da época. O matrimônio virou alvo de comentários e fofocas da preconceituosa sociedade de então.  Mesmo assim, o enlace ocorreu sob as bênçãos da “proprietária” da escravizada, que ganhou alforria como presente da festa de casamento.  Ela era a preferida da “sinhá” .

Em maio de 1888, Felícia comia uma jaca na frente de casa onde morava com o marido francês, quando um amigo lhe contou que a Princesa Isabel havia assinado a Lei Áurea. Ele estava chegando da venda de verduras que fazia em domicílios no seu cavalo. E informou que não se falava em outra coisa nos bairros como Recife, Boa Vista, Santo Antônio, São José onde todos os negros já estavam libertos.  Segundo o livro “Lembranças do Tempo que se Foi”, de Marcos Ferreira da Silva Sobrinho, a notícia sobre a Lei chegara pelo telégrafo. Feliz com a novidade, Feliciana plantou um caroço da jaca que comia em frente de sua casa. E disse aos vizinhos que a árvore que ali nascesse seria uma homenagem a todos os negros que viveram e morreram em cativeiro.

A planta chegou ao século 21. Por ocasião da construção do condomínio,  a antiga casinha foi demolida e a árvore do  sítio quase foi derrubada. Mas escapou da motosserra insana devido à mobilização da  professora Maria Antonieta Ferreira Vidal que, com seus alunos, cercou a árvore para que ela não caísse. Para Antonieta, que é irmã do autor do livro sobre a história da Várzea, a árvore tem que ser preservada. “Virou uma relíquia” não só do bairro, mas do próprio Recife. Porém, vocês vão saber agora o que aconteceu com ela.

A jaqueira histórica só não morreu, devido à resistência dos moradores da Várzea. Há poucos dias, quase foi  degolada

É que os moradores do habitacional tomaram um susto, nesse mês de agosto, quando viram chegar ao local um caminhão-girafa, com funcionários que, motosserra insana em punho, chegaram para mutilar a árvore. Os condôminos reclamaram, mas não foram atendidos. O corte foi radical.  Só sobraram mesmo o tronco, e dois galhos mais grossos, no formato em V. “Veja só, aquela famosa jaqueira de Feliciana, a Prefeitura fez uma poda nela. Antonieta, que não estava na hora, não teve como conter novamente, lamenta Carlos Alberto Alves da Silva”, em denúncia encaminhada ao #OxeRecife. Ele é morador do bairro, plantador voluntário de mudas na região.  E, algumas vezes, nos guia nos passeios pelo bairro, incluindo suas matas. Conforme Carlos Alberto, Antonieta está querendo saber onde denunciar e tentar tombar essa jaqueira. Ela indaga: “Você pode dar uma luz?”,  com zelo de fazer inveja aos órgãos públicos que não parecem ter cuidado com a preservação da nossa memória, já que no Recife é comum o sumiço de obras de arte, placas em bronze e até árvores das vias públicas.

Aqui vai a resposta: A denúncia deve ser encaminhada à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Recife. Como quem fez a poda é também a Prefeitura, é possível que a reclamação não dê em nada. Então, talvez seja bom apelar para a Ouvidoria da Prefeitura ou ao Ministério Público.

Quanto ao pedido de tombamento da árvore é preciso que o requerente faça uma solicitação via ofício e que, se possível, tenha assinaturas dos interessados, como associações, por exemplo. Após o recebimento, a SMAS  – a quem deve ser entregue o ofício – irá acionar a Comissão de Tombamento para analisar a viabilidade da solicitação. A informação é da própria SMAS.

O Recife tem 54 árvores tombadas. O tombamento é previsto em Lei Federal (4.771/65, do Código Florestal), ratificada por Lei Municipal (15.072/88) e por Decreto (24.510/2009). “Qualquer árvore pode ser declarada imune de corte, mediante ato do poder público por motivo de localização, beleza, raridade, condição de porta sementes,bem como boas condições fitossanitárias e área de projeção de copa livre”. Pelo visto, parece que o aspecto histórico não tem a devida importância, por parte de nossas autoridades.

Abaixo, você confere  vídeo sobre a “poda” assassina, e mais informações sobre a Várzea, e perdas de patrimônio verde naquele bairro e áreas vizinhas.

Leia também
Vamos visitar o “rurbano” bairro da Várzea? História é o que não falta
A Várzea de “Nos tempos do Imperador”: Igreja ostenta a coroa na fachada
Na Várzea, jaqueira lembra escravizados e vira memória de história de amor
Secular Magitot em ruínas na Várzea
Olha! Recife:  Rio Capibaribe em dose dupla, Várzea, e Recife Mãe
Várzea também tem queima da Lapinha
Arqueólogos revolvem o passado, no antigo “Engenho do Meio”, na Várzea
Arte monumental e natureza generosa
Instituto Ricardo Brennand em festa
O ar refrigerado na mata sob  sol
No Dia da Amazônia, trilha pela Mata Atlântica
Boi da Mata agita a Várzea
Praça da Várzea: requalificada porém descaracterizada
Carlos planta 300 árvores e é confundido com professor
Parem de derrubar árvores (323)
Parem de derrubar árvores (69)
Parem de derrubar árvores (128)
Parem de derrubar árvores(259)
Parem de derrubar árvores (286)

Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos e vídeo: Letícia Lins, Moradores da Várzea  e Acervo #OxeRecife

Continue lendo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.