Carta para Clarice Lispector: “Seus livros me fizeram ver o mundo de outra forma”

Conheci Fátima Brasileiro em 2017, alguns anos depois – portanto – de ter me familiarizado com a obra de Clarice Lispector (1920-1977) e do convívio com a legião de fãs da escritora no Recife que, embora ucraniana, passou parte da infância na nossa cidade. Mais precisamente na Praça Maciel Pinheiro, em sobrado que se encontra hoje totalmente abandonado (foto abaixo da estátua da escritora, com o sobrado em segundo plano).

De Clarice ou sobre ela, li vários livros, inclusive a impecável biografia assinada por Benjamim Moser, o mesmo que lançou uma outra, recentemente, sobre Suzan Sontag. Que devorei também. De Fátima, li Memórias Afetivas, uma despretensiosa e delícia de “viagem” ao Sertão, com suas lendas, as histórias contadas pelos avós (dos tempos de Lampião), as secas. E também com as enchentes, que transformavam em praias as margens do Rio Pajeú. O livro fala, ainda, das recordações das viagens de trem e até da autoridade que era o Chefe da Estação Ferroviária. Gostei tanto de Memórias Afetivas, que me ofereci para fazer assessoria gratuita de imprensa para minha amiga. O que terminou rendendo uma viagem de fato ao Sertão.

Foi viagem de lembranças, com direito a curtir os lugares da infância de Fátima, e a arranjar-lhe entrevista nas emissoras locais de rádio e até carro de som circulando nas ruas, chamando a população para o lançamento do livro, na cidade de Afogados de Ingazeira. Para mim, que amo o Sertão e sua história, foi uma diversão. O livro está esgotado, infelizmente. Mas que merece reedição, ah… merece. Atenção Cepe….

Pois não é que Fátima (de roupa azul) tomou gosto mesmo pela escrita… Tem participado de várias oficinas literárias e grupos de estudo para aprimorar o texto, inclusive na Livraria Cultura Nordestina. Localizada no Poço da Panela, a livraria é, na verdade, um Ponto de Cultura. Em 2019, lançou um desafio para seus frequentadores, a quem solicitou que escrevessem a Monteiro Lobato.

O vencedor seria aquele cuja “correspondência” registrasse o maior número de comentários no site www.blog.culturanordestina.com.br. Pois não é que Fátima venceu, ficando com o dobro de comentários do segundo colocado…

Em 2020, ela é forte candidata a sair na frente de novo. Longe do excesso de teoria literária que marca  a produção dos estudiosos das obras de Clarice, ela escreveu um texto simples, mostrando até que ponto as suas vivências e memórias a aproximam obra da escritora. Sei não… Mas achei a carta um deleite tão grande, quando a que ela venceu com Monteiro Lobato. Decidi aqui publicar. Fátima alega que não foi tão fácil escrever para Clarice, como foi para o Monteiro Lobato de seus tempos de menina. “Foi o autor de minha infância, lia tudo dele, e depois revi sua obra no Sítio do Pau Amarelo, na televisão”, diz. “Monteiro Lobato fez parte do meu mundo lúdico de criança”, explica. “Mas conheci Clarice já adulta”.

“A leitura de Clarice me fez ficar tão reflexiva que depois dela, passei a ver o mundo de outra forma”.  Leiam, pois a carta de Fátima a Clarice. E coloque o comentário no site. As cartas de Fátima e outros autores se transformarão no livro Memórias de Clarice Lispector, que será lançado na Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, que ocorre entre 1 e 12 de outubro no Centro de Convenções, em Olinda.

Recife, 10 de setembro de 2021

Prezada Clarice,

Reservada em vida, penso que vai agora se surpreender com tantas cartas na Caixa Postal. Quando ler a primeira, vai entender que esse foi o jeito encontrado pela Cultura Nordestina, para dizer que você continua presente entre nós, definitivamente.

A lembrança do nosso primeiro encontro é de quando comprei ¨Laços de Família¨, na Livro 7, um espaço de muita importância na vida cultural da cidade. Não é da sua época a livraria, mas quando eu disser o nome da rua – Sete de Setembro – vai se localizar, pois faz parte do mesmo Bairro da Boa Vista onde você viveu, e eu também. A Sinagoga que frequentou ficava na Rua Martins Júnior, uma das transversais, só que no trecho mais próximo à sua casa, na Praça Maciel Pinheiro, enquanto a Livro 7 estava mais perto da Faculdade de Direito e do Parque 13 de Maio.

Atraída pelo título, pois os meus laços são muito fortes, li com crescente interesse cada um dos treze contos. Ao longo desse tempo os reli, e agora, antes de lhe escrever, leio outra vez os preferidos.

Uma das primeiras identificações, foi logo no trecho inicial do conto que dá nome ao livro. Sou de origem interiorana e nosso meio regular de transporte, por longos anos, era exclusivamente o trem. Igual à mãe do texto, a minha também contava os volumes ao embarcar e os recontava a cada parada, pelo risco real de extravio, nas descidas e subidas dos passageiros.

¨Uma galinha¨, é o retrato do domingo na maioria das casas daquela época. O almoço era cevado no quintal por algumas semanas, assim engordava e ficava limpo. Comprar na feira e matar logo não era aconselhável, podia inclusive estar doente. Várias vezes bati o sangue de uma delas no prato contendo vinagre, para fazer o molho pardo, que eu adoro!

Minha avó dizia que se a gente tivesse pena, a vítima demorava a morrer. E não é que um dia aconteceu? A galinha soltou-se e saiu correndo pela cozinha, o pescoço sangrando, um alvoroço. Acabou na panela, o coraçãozinho com dois pequenos cortes transversais, uma simpatia para adivinhar o sexo de um bebê. Ficasse bem fechado após o cozimento, seria um menino; com as bordas entreabertas, uma menina.

Até a chegada da ultrassonografia, a galinha, além de ingrediente principal dos pirões do resguardo, tinha a responsabilidade de definir a cor do enxoval. Quando o prognóstico se confirmava, perfeito. Quando falhava, a sorte dela era estar morta e não ser filiada a nenhum conselho profissional. À parteira, contra os princípios de então, só restava a alternativa de vestir de rosa os meninos, e de azul, as meninas.

Outro conto do livro não me saiu da cabeça até hoje. As impressões sobre as reuniões familiares nunca mais foram as mesmas, a partir do ¨Feliz aniversário¨ de Dona Anita. Aos oitenta e nove anos e em dia de festa, teve o nome mencionado apenas pela vizinha. As noras de Olaria e Ipanema, ¨mulherezinhas de pernas finas, com colares e brincos falsificados¨, como a tratavam? Seria o desprezo entre as três, motivo para não dizer aos leitores os seus nomes?

A indiferença dos filhos se refletia nos cumprimentos distantes e no beijo cauteloso na pele ¨infamiliar¨. Os sentimentos de estranheza e hostilidade de uns para com os outros, resultado das ofensas e desavenças passadas, se traduzia no espírito do (des)encontro – olhares impassíveis, corações revoltados e inquietos, angústia muda. Durante o ano inteiro, a vida da velha mãe era uma vaga etapa na da família. Nova visita só no próximo aniversário, diante do bolo aceso. ¨Ano que vem nos veremos, mamãe! ¨

A bem da verdade, a aniversariante desprezava toda a descendência – ¨que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas¨; inclusive os próprios filhos, não passavam de ¨carne do seu joelho¨. Que motivo a faria considerar, entre tantos netos e bisnetos, justamente Rodrigo, filho de Cordélia, ¨carne do coração¨?

Cordélia, a nora mais nova, de olhar sempre ausente e sorriso estonteado. Que segredo carregaria? Por acaso acreditava sobre ¨acontecer uma coisa que só acontece quando a gente acredita¨? A velha grande, magra, imponente e morena, acalentaria sonhos na aparência oca? Em algum ponto sogra e nora convergiam. Havia entre elas um cúmplice entendimento sobre a efemeridade da vida, mesmo sendo a verdade falada de relance, em linguagem compreendida apenas pelas duas. Quantas suspeitas você deixa nas entrelinhas!

Toda a conversa até agora foi apenas sobre o ¨Laços de Família¨. Também, aqui pra nós, tem algo mais poderoso? Sejam nós ou laços o que nos une, é disso que somos feitos, para o bem e para o mal.

Fica óbvio que neste espaço não cabem considerações sobre outros livros, marcas que nos acompanham nas leituras e escritas, na vida. Comprei agora no seu centenário, ¨Todas as Crônicas¨, uma festa para quem, feito eu, é cronista aprendiz. Outra publicação muito boa é ¨Clarice na cabeceira¨, com trechos de nove dos seus romances, um convite à leitura completa de sua obra.

¨Correio para Mulheres¨, mais uma edição comemorativa, reuniu os textos publicados em ¨Correio Feminino¨ e ¨Só para mulheres¨. O livro é lindo, traz fita em cetim para marcar as páginas e muito vermelho na capa. Aproximou mais você, essa é minha impressão. Ler o trabalho jornalístico sobre assuntos triviais, mesmo sob o disfarce de pseudônimos, é um imã que atrai o leitor comum, e fio que nos conduz pelos caminhos da sua genial criação literária. Gosto de pensar que você escreveu também para ser lida. Lida por todos que se interessam pela reflexão.

Preciso conversar muito, mas fico por aqui. Ah, ia esquecendo de contar que a minha sobrinha se chama Clarice – nome delicado mas de sonoridade expressiva e forte. Sua xará lhe conhece faz tempo, e conserva na estante dos livros da infância ¨A vida íntima de Laura¨, ¨A mulher que matou os peixes¨, ¨O mistério do coelho pensante¨ e ¨Quase de verdade¨. Sobre o último, nos divertíamos com Ulisses, por ter o mesmo nome de um tio muito querido. E pela interação dele, contando uma ¨história bem latida¨. Você criou personagens bichos incríveis!

Nesse momento, prefiro não lhe dar notícias do Brasil. A esperança é que no próximo 2022 recuperemos a dignidade de cidadãos. Agradeço pelo legado e aproveito para reafirmar que a curiosidade pelos seus escritos não se esgota. Cada vez que a gente lê, surge um feitiço a nos desafiar, um ponto a refletir. Recomendações à comunidade judaica, por quem tenho especial carinho.

Fique bem e em paz.
Abraço,
Fátima Brasileiro

Nos links abaixo, você lê outras informações sobre Clarice e Fátima

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Serviço:
O quê: Segunda Coletânea  de Memórias: Cartas à Clarice
Quem promove: Novo Estilo Edição, editora da Cultura Nordeste (através de edital)
Quem participa: Quem quiser escrever uma carta a Clarice Lispector
Onde publicar: www.blog.culturanordestina.com.br
Como votar, fazendo comentários no mesmo site. Quem tiver mais é o vencedor
Etapa final: após premiações para os três primeiros lugares (em livros), a Cultura Nordestina promete lançar o livro “Memórias de Clarice Lispector” na Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, que ocorre no Centro de Convenções, em Olinda.

Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos:  Fernando Batista (cortesia) e Letícia Lins (acervo #OxeRecife)
Obs: Algumas fotos do post reproduzem cartazes colados no sobrado da Maciel Pinheiro, onde Clarice passou sua infância.

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4 comments

  1. Obrigada, Letícia
    Você sempre generosa com os meus escritos.
    Acho que você capta na simplicidade das minhas palavras, despretensiosas, o sentimento que elas carregam.
    Abraço com gratidão.

  2. Argene Carneiro disse:
    Parabéns Fátima, seu jeito brejeiro de escrever me cativa.
    A carta a Clarice passa leveza. Gosto muito da Caixa Postal cheia demonstra a admiração que tem por ela e puxa o fio da meada.

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