Não foi no Recife. Foi no Rio de Janeiro. A tragédia aconteceu em um museu incluído entre os cinco maiores do mundo e talvez o mais importante do Brasil. O que ocorreu no Museu Nacional é um retrato da forma como a cultura é tratada no país. Imaginem, uma instituição como aquela, não contar com serviço de prevenção a incêndios, estar irregular junto ao Corpo de Bombeiros e viver em situação de carência tão grande, em que faltavam recursos para o básico inclusive para manutenção do edifício. Com o incêndio do final de semana, parte do seu acervo – cerca de 20 milhões de peças – virou cinzas. Ou seja, o fogo enterrou um pedaço valioso da nossa história e da nossa identidade. Aliás, da nossa história só não, mas da humanidade. Ali estava Luzia, o fóssil humano com 12 mil anos, achado em Minas Gerais. Ali ficava o mais importante acervo científico do Brasil. E o Museu abrigava, também, nada menos de 700 peças referentes ao Egito Antigo, coleção que era considerada a mais importante sobre o assunto da América Latina.
E é sobre as relíquias do Egito que quero falar. Os grandes meios de comunicação têm se referido à perda de uma mulher embalsamada, que seria Sha-amum-em-su, que entoava cânticos sagrados no templo dedicado ao Deus Amon. A peça teria sido presenteada a Dom Pedro Segundo, em uma de suas viagens à África, entre 1871 e 1876, quando ele teria ganhado o sarcófago de presente. Falam até que o monarca costumava “conversar” com a múmia. Ninguém, no entanto, está falando sobre uma outra múmia, talvez mais preciosa do que a primeira. Pois, segundo os especialistas, era a única (feminina) no mundo cujo embalsamento foi feito por membros e não no corpo inteiro. Dizem que há uma outra múmia, embalsamada, no mesmo sistema, mas do sexo masculino. E está exposta no British Museum de Londres. O Governo inglês inclusive já havia tentando comprar a nossa múmia, para expor em terras inglesas. Queria expor, em caráter permanente, casal tão especial. Há um bom tempo ouço falar dessa múmia, que foi comprada por Dom Pedro, não o Segundo, mais o Primeiro. E a transação foi no Brasil mesmo.
Isso porque uma carga de relíquias egípcias estava a caminho de Buenos Aires, com o italiano Nicolo Fiengo, conhecido comerciante de peças históricas e artísticas da época. Como grassava uma peste na Argentina, temendo pela própria saúde, Fienko resolveu interromper a viagem, e vender a carga ao Imperador Pedro Primeiro. Foi assim, que o Brasil passou a ter uma das mais importantes múmias do mundo, agora consumida pelas chamas. Essa múmia, no entanto, me era familiar desde a década de 1980, quando estive no Rio de Janeiro, visitando uma amiga, Anita Dubeux, hoje residente no Recife. Anita era frequentadora assídua do Museu Nacional, e visitava com frequência a coleção egípcia, cuja cultura sempre lhe despertou a atenção e é motivo de leituras. Nesta condição era, também, uma espécie de “olheira” voluntária das condições desse acervo. Cada vez que ia no Museu, a múmia estava lá, com uma diferença. O tecido que lhe cobria os pés ia desaparecendo a cada dia. Preocupada, levou o problema à direção do Museu Nacional, informando sua suspeita quanto a um provável ataque de fungos. Sabe o que fizeram? Botaram naftalina na vitrine da Múmia (datada do período Saita – 664 a 525).
Inconformada – minha amiga sempre consumiu cultura – Anita fez a denúncia do descaso em carta enviada ao Jornal o Globo. Relatou a história e a falta de cuidado com a que a múmia era tratada. Mostrou que ela não estava sendo devidamente conservada e lembrou até que a sala onde a relíquia estava, não era climatizada. Muitas hipóteses surgiram sobre a mulher embalsamada. Já se disse que era uma princesa, uma sacerdotisa, uma adolescente. O certo, no entanto, é que, independente da época, a peça tem uma particularidade tão mais importante do que Sha-amum-em-su, tão famosa, e sobre a qual dizem que Dom Pedro Segundo até conversava com ela. Sha-amum foi um presente. Mas a múmia da época Saita foi uma aquisição feita por Dom Pedro Primeiro , em uma daquelas oportunidades únicas que, muitas vezes, o destino oferece. No caso, dando ao Brasil o direito de ter uma peça, única no mundo, e disputada por países como a Inglaterra. A diferença é que a múmia masculina deles – que poderia ser eternizada em dupla com a nossa – está sã e salva. Mas permanecerá para sempre sem o par feminino, porque o Brasil não quis vender a peça da época Saita. Infelizmente, desta o que podemos dizer é que, nem lá, nem cá. Isso porque a nossa, também tão valiosa, virou pó, depois de arder em fogo, que consumiu milênios de história que, como se vê, não diziam só ao Brasil, mas ao mundo.
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Texto: Letícia Lins/ #OxeRecife
Foto: Internet
Parabéns pela matéria, Letícia. É preciso lembrar, à exaustão, a incapacidade deste país de preservar um tesouro que não mereceu. Esperamos que outras relíquias, existentes em outros museus, possam escapar de tragédia semelhante. A coleção egípcia era muito rara. Dom Pedro I comprou a coleção do comerciante italiano, Nicolo Fiengo, como você explicou, e legou-a aos cuidados do Brasil. O Britsh Museum tentou trocar a única múmia feminina que estava no nosso museu por várias obras de arte, no intuito de conseguir o par para a também única múmia masculina embalsamada membro a membro, que está naquele museu. O governo brasileiro não concordou e agora ela está destruída, para sempre! O lamento será eterno!