Não pude ir à edição das Caminhadas Domingueiras dodomingo, 29 de outubro, no bairro da Várzea. Infelizmente. Por esse motivo,volto a publicar esse post, de setembro de 2021, cheio de memórias afetivas por aquele que é um dos cinco bairros que, por diferentes motivos, mais gosto do Recife. Os outros são Casa Forte, Poço da Panela, Apipucos e Espinheiro. Vamos lá, então:
Dizia Gilberto Freyre que Apipucos era um bairro “rurbano”. Ou seja, uma mistura de rural com urbano, característica que se mantém, apesar do avanço da especulação imobiliária e da redução do verde dos seus antigos quintais e sítios. Dia desses, estive fazendo uma caminhada pela Várzea com o Grupo Andarapé, sob a batuta de Ana Maria Almeida e tendo nosso amigo Carlos Alberto Alves da Silva como guia. Morador do bairro há décadas, ele conhece a Várzea como ninguém. E cheguei à conclusão que o bairro da Zona Oeste do Recife é tão “rurbano” no século 21, quanto foi Apipucos até meados do século passado. Neste, apesar dos muitos espigões, ainda se observa com intensidade veículos de tração animal, cavalos tomando banho ou comendo mato à beira do açude, e até cabras e bodes devorando capins que restam nos grandes quintais. Na Várzea, no entanto, que é mais horizontal, ainda há grandes extensões verdes, remanescentes da Mata Atlântica, em terras hoje de propriedade da família Brennand, mas que foram engenhos de açúcar no passado, que ali começaram a se instalar ainda no século 16. Até criação de gado de raça existe na Várzea! Uma paisagem rural, tão perto dos burburinhos urbanos. Também são vistos chalezinhos com alpendre, cercados de fruteiras, à moda dos utilizados em fazendas, engenhos e sítios do Nordeste.
Alguns ficam na Rua Barão de Muribeca, em terras do antigo engenho São João, que pertencia a Francisco do Rego Barros, sobrinho do Conde da Boa Vista (que tinha também, outros engenhos, como o São Francisco e o Cosme e Damião). Andamos pois por terras da antiga usina São João (a primeira de Pernambuco), que começou a moer em 1895, e que funcionou até 1945. A indústria contava com onze quilômetros de linha férrea, para transporte do açúcar. E trouxe dos Estados Unidos desde maquinário até ponte de ferro, assim como foi buscar na França, engenheiros e operários qualificados. Um dos engenheiros, Júlio, apaixonou-se por uma escrava, em uma bela história de amor que renderia um romance e sob a qual já falamos no #OxeRecife. O casório entre o graduado branco europeu e uma negra cativa deu muito o que falar, e vocês podem conferir a história em um dos links no Leia também.
Em área que pertenceu à Várzea no passado – hoje transformada no bairro da Cidade Universitária. e no qual fica o campus da Ufpe – também há paisagens que lembram os ambientes rurais, inclusive ruínas de fornalha e boeiro da antigos engenhos de açúcar. Elas ficam bem pertinho da antiga Estrada Velha da Várzea, cujos caminhos em barro ainda sobrevivem em terras do antigo Engenho Velho, que ali funcionou a partir de 1537, sendo ele propriedade do judeu convertido Álvaro Velho Barreto.
Em uma ruazinha escondida no meio do campus da Ufpe, ainda existe o Arruado Engenho Velho, implantado em 1870, para abrigar trabalhadores dos canaviais. Em frente ao casario – hoje descaracterizado – há um mapa afetivo da história do arruado, cujos moradores têm uma vida de luta pela permanência nas terras onde viveram seus ancestrais. A história do Arruado Engenho Velho está reproduzida em um painel afetivo, construído por estudantes e professores da Ufpe, que faz uma linha do tempo, e que inclui os seus moradores.
Perto do Arruado, fica um sítio rico em história. Nele há inclusive um monumento que lembra que foi ali que ficava a casa de Fernandes Vieira, onde em 1645 “os restauradores declararam guerra aos holandeses que ocuparam esse país”. No dia em que lá estivemos, os antigos alicerces da residência estavam cobertos com lona preta, já que são alvo de escavação arqueológica. “No terraço da casa grande do seu engenho, na Várzea, Fernandes Vieira gozava de uma pequena trégua de repouso na sua vida agitadíssima de guerrilheiro. Era preciso recuperar um pouco da energia, seriar mesmo umas ideias, formar uns planos e ele só o podia fazer no sossego do engenho, à hora tranquila em que a natureza adormece, os tons cruz da luz solar se embatem, a paisagem se embuça, o gado vai dormir no pátio”, conta Mário Sette, em Terra Pernambucana (1925).
Como dá para se perceber, o aspecto rural do bairro sobrevive não só na paisagem como na própria história. No passado, foram muitos os engenhos que funcionaram na chamada Várzea do Capibaribe, segundo relata Pereira da Costa em Arredores do Recife. Ele diz que “as terras da Várzea foram das primeiras que se repartiram por diversos colonos, logo em começos da povoação de Pernambuco, na primeira metade do século 16”. Entre os engenhos citados na Várzea, estão o Santo Antônio, o São João e o Engenho do Meio que pertenceram a Fernandes Vieira. E, pelo que se percebe, a Várzea era i-men-sa. Pois muitos engenhos listados por Pereira da Costa como sendo em terras do que é hoje aquele bairro, deram origem a outros núcleos urbanos, posteriormente transformados nos atuais bairros da Torre, Madalena, Apipucos, Monteiro e Casa Forte. É muita história, não é não?
Divirtam-se “passeando” pela galeria de fotos abaixo, onde você confere paisagens “rurbanas” que sobrevivem na Várzea e na Cidade Universitária, que pertencia no passado ao mesmo “território”:
Nos links abaixo, você confere mais informações sobre a Várzea e também sobre passeios do Grupo Andarapé, que incluem roteiros urbanos e trilhas em áreas rurais.
Leia também
A Várzea de “Nos tempos do Imperador”: Igreja ostenta a coroa na fachada
Na Várzea, jaqueira lembra escravizados e vira memória de história de amor
Secular Magitot em ruínas na Várzea
Arte monumental e natureza generosa
Instituto Ricardo Brennand em festa
O ar refrigerado na mata sob sol
No Dia da Amazônia, trilha pela Mata Atlântica
Boi da Mata agita a Várzea
Praça da Várzea: requalificada porém descaracterizada
Carlos planta 300 árvores e é confundido com professor
Moreno: uma história de assombração
Passeios ao ar livre para quem não aguenta mais ficar em casa
Andarapé entre os sons da natureza
Casarão, Dona Maria e pinto roxo
Oásis do Agreste de Pernambuco, Serra Negra vira música
Quem vai flutuar nas águas do Jalapão?
Vale do Catimbau: milênios de história
No Vale do Catimbau, longe do carnaval
Atendendo a pedidos sobre Aparauá
A melhor conexão é com a natureza
Oásis do Agreste, Serra Negra vira música
As outras flores da Dália da Serra
No Dia da Amazônia, trilha pela Mata Atlântica
Andarapé entre o século 16 e o 21
Andarapé vai ao Jardim Secreto no Poço da Panela
Domingo de trilhas na natureza
De volta às trilhas ecológicas
Trilhas voltam com força
Temporal: formigueiro e ninho de João de Barro à prova de chuva
Texto e fotos: Letícia Lins / #OxeRecife
Excelente matéria de bom gosto e refinada. Parabéns!