Sim, os trens já fizeram parte de nossas vidas. Não sei bem o motivo, mas os vagões sempre foram vistos de forma muito lúdica por todos da minha geração. Quando criança, ao viajar para Vitória de Santo Antão – terra dos meus ancestrais – eu e as minhas irmãs pedíamos para ir de trem, pois as paisagens laterais aos trilhos sempre eram muito mais bucólicas e bonitas do que as contempladas nas viagens por rodovia. Corta. Passagem de tempo. Já jornalista, lembro-me da cobertura da cerimônia presidida pelo então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990, em que foi assinada a privatização da então Rffsa (Rede Ferroviária Federal). A Malha Nordeste saiu pela bagatela de R$ 15,7 milhões contra R$ 216 milhões pagos pela Malha Sul.
Mas nada, nada mesmo do que se esperava das nossas ex-futuras vicejantes ferrovias, no entanto, aconteceu. Os trilhos foram sucateados, as locomotivas saíram de circulação e os trens viraram peças de museu, deixando órfã e quase falindo a antes movimentada economia de muitos municípios nordestinos., que eram cortados pelas vias férreas. Com o fim dos trens, morreram sonhos, empregos, e o Nordeste virou refém do transporte rodoviário. Aliás, não só o Nordeste, mas o Brasil. Porque retomo esse assunto? É que no sábado passado, o historiador Josemir Camilo relançou o quarto volume da tetralogia que ele escreveu sobre as ferrovias do Nordeste, após anos de exaustivas pesquisas sobre o assunto. As ferrovias eram implantadas sob o comando de engenheiros ingleses, pois o nosso então subdesenvolvido país não tinha tecnologia para tanto, no século 19. Precisava de know how estrangeiro em trilhos, em eletricidade, até mesmo no abastecimento de água.

A postagem do último sábado sobre o livro “Uma família de engenheiros ingleses no Brasil – de Mornay Brothers”, de Josemir Camilo, levou um assíduo leitor do #OxeRecife, Edjailson Xavier Correia, a evocar os velhos tempos das locomotivas. Ler a postagem sobre o livro a respeito das nossas extintas ferrovias, despertou nele sentimento de saudosismo, em que recorda a bela Estação Ferroviária (em passeios com o pai) no bairro de São José, os ingleses que moravam no Recife, e até time de futebol criado por executivos de empresas estrangeiras. Os ingleses eram tão importantes, que um deles chegou a ser homenageado pelo compositor Clídio Nigro (1909-1982), compositor que criou o Hino do Elefante, de Olinda. Vejam o relato de Edjailson:
“Amanhecer lendo essa beleza de homenagem nos fortalece de amar ainda mais o nosso Recife. Dessa Estação, já fui de trem para Maceió, Caruaru, Belo Jardim, e era tudo muito lindo. E quando menino, morando no bairro de São José, era zanzando por aí que vivia meus sonhos de criança. Nessa gestão dos ingleses, tinha o Engenheiro Fischer, que era o gestor principal, que andava por Olinda e que era amigo do poeta Clídio Nigro e de seus batutas nas farras do carnaval da cidade histórica.
E não foi que o homem foi homenageado por Clídio Nigro… Na música “Banho de Conde”, até inglês entrou na farra pernambucana. Tudo isso aprendi com o meu pai, contando essas histórias, andando com ele de mãos dadas comigo na Estação Central, como sempre chamamos o local de onde chegavam e saíam os trens. Já a Tramways, até clube de futebol teve em Pernambuco. Foi fundado na Avenida Rui Barbosa, em 23/4/1934 com as cores branco, azul e vermelho. Tudo na Estação Central tinha um pouco de futuro: a tecnologia chegava ao Recife e nossas ruas fervilhando de sonhos. Muitos desses sonhos viraram cinzas do desamor atual ao Recife. Quando vem uma oportunidade de conhecer e viver a história da cidade vale a pena conferir. Ainda bem que nem tudo está perdido”.
A Tramways para os que não lembram, era a empresa de distribuição de eletricidade no Recife dos séculos passados. Ao informá-lo que não entendi se o Fischer da música de Clídio Nigro era da Tramways ou da Railways, ele me esclareceu:
“As empresas inglesas no Brasil se integravam como de eletricidade e ferrovias. Poderiam mudar a nomenclatura, mas uma integrava a outra, aproveitando-se de nosso atraso tecnológico da época. Papai conhecia o Fischer pois ele era como fosse um “CEO” nos dias de hoje, por isso o chamavam de “padroeiro” porque iluminava nossas noites. Aliás, o que ainda resta de trilhos na cidade foram eles que trouxeram. Essa invasão da economia inglesa veio desde a morte de Delmiro Gouveia que competia com eles naqueles conflitos de “linhas para tecidos” que fabricavam e a energia que Delmiro descobriu em Paulo Afonso. Recife e Olinda eram iluminadas por painéis elétricos. Quando tiveram a ideia de transformar em Museu a Estação Central, fui convidado por profissionais da antiga Rede Ferroviária para uma caminhada, a pé mesmo, desde a Estação até os percursos dos trens. E um dos servidores antigos me mostrou uma mesa e me disse que naquela mesa a Diretoria (inclusive Dr. Fischer) se reunia todas as semanas. E foi aí que me chamou a atenção dessa integração, vale ressaltar que nessa época estava concluindo meu curso de Administração e tinha em mente conhecer o que aquela invasão de empresas inglesas no Nordeste provocou. E também a quem eles temiam se desenvolver no Brasil. Delmiro Gouveia era o foco deles, o ideário e o nível gerencial e comercial deste nordestino já provocava na Europa temores de uma nova economia, e você como Jornalista já deve conhecer um pouco da História romantizada de Delmiro Gouveia, quando na verdade poucos se aventuram conhecer sua visão empresarial. Estava estagiando na Prefeitura do Recife,quando o Prefeito Antônio Farias mostrou ao Ministro Hélio Beltrão meus trabalhos de Desburocratização. E, no Edifício da Sudene o Ministro ouviu uma conversa minha com meus Professores da Universidade que precisavam pesquisar sobre Delmiro Gouveia e buscavam minha orientação e me pegou pelo braço e me perguntou.. ‘é verdade que Delmiro Gouveia foi quem construiu o primeiro Supermercado do Brasil aqui em Pernambuco ?’ Confirmei e ele me pediu para no outro dia conhecer esse local. Quando se aproximou do Quartel do Derby, apontei o prédio pra ele que estranhou quando entramos no local, não ter nenhuma placa que assinalasse tal efeméride de nossa História Econômica. Segurando meu braço, me disse bem baixinho, que fazia pouco tempo estava em Londres e que professores universitários e empresários ingleses falavam da saga de Delmiro Gouveia e querendo saber se Pernambuco ainda tinha rastros de sua “genialidade”. Passamos pouco mais de uma hora no local e o Comando da Polícia não tinha referências da construção e o que eu conhecia ia narrando pra ele. Me agradeceu e me pediu que continuasse estudando a História Econômica do Brasil e que lamentava que nós, pernambucanos, deixássemos de lado os homens que construíram a História Econômica do Brasil. Isso é pra ver o quanto os ingleses com energia e transporte ferroviário sentiam a grandeza do Brasil fulgurando” .
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Texto e fotos: Letícia Lins / #OxeRecife
“Letícia, seu texto é muito interessante, especialmente pelas memórias de Edjailson que você compartilhou conosco. Inclusive, acredito que o conheço. O texto é um belo resgate de uma parte importante da história da Rede Ferroviária em Pernambuco, abordando também o futebol e a trajetória de um dos maiores brasileiros de todos os tempos, Delmiro Gouveia.
Ao falar sobre a R.F.S.S.A. e o futebol, gostaria de mencionar o time Great Western, fundado no início do século passado pelos empregados da empresa inglesa de mesmo nome. Mais tarde, ele se transformou no Ferroviário, ou Ferrim, como carinhosamente o chamávamos, que disputou diversos campeonatos pernambucanos. Outro clube que conheci foi o Locomoção, formado por ferroviários de Jaboatão na primeira metade do século passado. Esse time chegou a vencer a segunda divisão do campeonato pernambucano e só não disputou a divisão principal por falta de recursos financeiros. Nesse contexto, tenho uma memória pessoal: meu tio, conhecido como Manola, foi goleiro desse time entre as décadas de 1950 e 1960. Ele marcou época e, com certeza, é lembrado pela velha guarda dos ferroviários. Quem viveu aquele tempo certamente já ouviu falar dele.
Quanta riqueza, Denaldo!