Na última sexta-feira, estive no Poço da Panela, no início da noite, e observei uma movimentação diferente. Mas só ao chegar em casa, me dei conta que o bucólico bairro da Zona Norte está em tempo de festa religiosa. As comemorações se encerram nesse domingo (2/2) com procissão pelas ruas da localidade e retorno da imagem da Santa à Igreja de Nossa Senhora da Saúde, templo católico datado do século 18.
E os festejos começam cedo, com alvorada festiva (5h), missa (6h), missa solene (10h), ângelus (12h), procissão (15h). O cortejo vai sair da igreja por volta de 15h, segue pelas ruas Capitão José Xavier, Cavalcanti Nozinho, Pedro Toscano, Cônego Frederico e retorna à Praça do Santuário. Quase esquecida pelos católicos do Recife – que são mais devotos de Nossa Senhora do Carmo e de Nossa Senhora da Conceição – a Festa de Nossa Senhora no Poço já teve seus dias de glória, entre o século 19 e o início do século 20. No sábado à noite, havia um palco armado em frente da igreja, com um som estrondoso, mas não havia tanta gente no local, como suponho que acontecia antigamente.

A julgar pelo que a gente lê em romances da época, a festa era muito prestigiada no passado. Isso porque o Poço da Panela correspondia a uma estação de veraneio, procurada por famílias abastadas. Gente que tinha negócios no Centro – nas ruas sofisticadas da época, como a Nova – e que usava o Poço para os momentos de lazer. Lendo livros como Os Azevedos do Poço (Mário Sette) e A Emparedada da Rua Nova (Carneiro Vilela), dá para perceber que a festa atraía tanta gente que, mesmo naqueles tempos de baixa criminalidade, a presença da multidão sempre terminava em confusão. Provavelmente a realidade inspirou a ficção.
“Mas os soldados estavam apitando… Barulho. E feio. Tinham dado uma facada numa mulher. – Quem foi? Quem foi”, conta Mário Sette, em um trecho do seu romance. Já Carneiro Vilela, ao preparar o espírito do leitor para um crime que acontece na festa, relata: “É sabido que nunca houve festa no Poço que terminasse sem registrar algumas mortes e diversos ferimentos”. Em compensação, os dois autores citam as águas limpas do Rio Capibaribe, que segundo Vilela funcionavam como como “refrigério aos calores da noite”. Ou seja, o rio era tão limpo que até se praticava banhos noturnos.
Daqueles tempos, sobraram a própria festa (não tão disputada como antes), os casarões antigos, os barcos que fazem a travessia de uma margem a outra, inclusive nos dias da procissão. Mas sem a graça do passado. “Atravessando o rio, as gôndolas com balõezinhos e archotes que traziam ainda o povo para o Poço”. Gôndolas? Agora sei, porque chamavam o Recife de Veneza Brasileira. As descrições daquela e outras festas de rua – no entanto – mostram nos dois livros como elas eram vivenciadas pelos moradores e visitantes. Talvez seja por isso que qualquer evento de rua no Poço da Panela seja caminho para o sucesso. É que a tradição de quermesse vem de longe… E haja nostalgia!
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Texto e foto: Letícia Lins / #OxeRecife
Nos tempos áureos da festa do Poço, uma amiga da minha mãe arrumou uma paquera lá e o cara disse:
Eu sempre passo na sua rua de manhã. No dia seguinte ela ficou de olho para ver o cara passar, e ele passou, era o vendedor de cuscuz.