Sessão Recife Nostalgia: “Como era lindo o bairro da Boa Vista”

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Há alguns dias, estive com o amigo Jacques Ribemboim na casa de Ester Katz Azoubel, 96 anos. Foi ela quem me deu informações sobre astros de Hollywood que passavam pelo Recife no século  passado, incluindo Errol Flynn e Henry Fonda. Sobre o primeiro há registros de sua viagem ao Brasil, em jornais da época. Do segundo, nada encontrei, só o resgate através da impressionante memória de Tia Teté (como ele é chamada pelos sobrinhos, inclusive Jacques, agora imortal da Academia Pernambucana de Letras).  Provavelmente Henry Fonda deve ter se hospedado no Hotel Central (foto abaixo), que então recebia gente famosa, incluindo a tripulação e passageiros do dirigível Zeppelin. Seus hóspedes costumavam passear pela Praça Maciel Pinheiro, Rua da Imperatriz, Rua da Aurora. Foi ouvindo-a que consegui resgatar não só as históricas passagens de astros do cinema mundial pelo Recife, como também a “paisagem” do bairro da Boa Vista do início do século passado: as ruas residenciais, os palacetes, os trilhos do bonde, as brincadeiras de rua das crianças. Ela destaca as belezas do bairro de um século atrás, e não disfarça a tristeza pelo em que ele se transformou.

Tia Teté nasceu no Brasil, mas é filha de imigrantes judeus (que vieram da antiga Bessarábia)  e se estabeleceram no bairro da Boa Vista,  então habitado não só por brasileiros, mas também por judeus, ingleses, americanos, alemães e até italianos. Lembra de alguns sobrenomes italianos que passaram por lá: Papaléo, Di Carli, Lepovitera, Vitrúvio. Dessa última família, fala de uma pessoa que provavelmente no século 21 faria sucesso nas redes sociais: Iracema Vitrúvio. Era uma bela mulher que usava roupas tão finas e rendadas, que os moradores do bairro ficavam de “plantão” para vê-la  passar. Todo mundo queria  ver o look do dia. “Muitas vezes quando ia à Helvética”, um empório português, onde a população rica costumava se abastecer com especiarias que chegavam do outro lado do mar. Tia Teté passou a infância na Rua da Conceição, que “era bonita, arborizada, residencial e a vizinhança se dava bem”.  Conta que não havia “residência suntuosas”. Mas uma se destacava das demais.

Era tão bonita, que chamava a atenção de quem passava na rua: “a casa da família Marques dos Reis”, conta ela. O imóvel inclusive havia pertencido ao Consulado Francês.  Lembra do bonde passando pela Rua da Conceição e por outras vias do bairro, como a Manoel Borba. “Viajei ao máximo de bonde”, recorda. Mas fala, também,  das crianças brincando de roda no meio da rua. E das inevitáveis molecagens, que os  pequenos costumam fazer. Uma ocorria no período junino, quando os meninos da vizinhança aprontavam suas trelas. “Eles colocavam  peidos de velha nos trilhos, mas não acendiam, pois esperavam que o bonde passasse”, explica. Com as faíscas que “saíam do atrito com os trilhos, os fogos iam pipocando, eram tiros que não acabavam mais”, diverte-se. Lembra que as famílias  católicas da área frequentavam as duas igrejas seculares da via: a Santa Cecília e Matriz do Rosário (foto abaixo) , construídas entre os séculos 17 e 18. E também a Matriz da Boa Vista, que fica na esquina da Rua da Imperatriz.

“No início do século passado, as ruas eram muito tranquilas à noite”, e as pessoas saíam de casa para conversar, trocar informações. Um dos locais  prediletos da comunidade era a Praça Maciel Pinheiro (foto superior), na época bem cuidada e tão bonita que atraiu até a atenção de Henry Fonda. Outro ponto de encontro era o Bem-Me-Quer, como era chamada a margem do Rio Capibaribe, na extensão que fica  entre as Pontes Boa Vista (Rua da Imperatriz) e Duarte Coelho (Avenida  Conde da Boa Vista).

Era o local do “footing”, da moçada paquerar, de exibir a roupa nova, o chapéu da moda.  Porém como Teté era ainda muito jovem, os pais – Beyla e Jacob – só lhe permitiam ficar no local até 17h. “Naquela época, ruas como a Imperatriz eram refinadas, inclusive concentrando os consultórios dos melhores médicos da cidade, que depois se estenderam também para a Rua Nova”, diz, referindo-se  à então famosa via do Bairro de Santo Antônio, vizinho ao da Boa Vista e dele separado pelo Rio Capibaribe.  Boa Vista e Santo Antônio são ligados por duas pontes (Ponte da Boa Vista e Ponte Duarte Coelho).

Diz ela, que além da Rua da Conceição, havia muitos judeus na Praça Maciel Pinheiro e em outras ruas da Boa Vista (Glória, Alegria, Velha, Conceição, Rua da Matriz), onde também instalavam suas lojas.  Já a Rua Barão de São Borja (foto quadrada) era mais residencial, possuía belos casarões alguns dos quais sobreviveram ao passar dos anos. “Tenho a impressão que em algumas ruas da Boa Vista, a população judia ocupava 90 por cento das casas, era o gueto”.

Teté nasceu no Brasil, mas os pais chegaram ao país como muitos judeus, fugindo da Primeira Guerra Mundial. Jacob veio com um irmão e aqui ambos se instalaram, talvez em 1915. Os irmãos implantaram negócios, compraram a casa da Rua da Conceição e Jacob voltou à Europa, anos depois, para buscar os  pais e irmãs. Veio, também, uma prima órfã, 20 anos mais jovem que Jacob. Na viagem de navio, os dois se apaixonaram e casaram ao chegar no Recife. Tia Teté conta que a mãe ficou encantada ao colocar os pés na cidade. “Era um dia de carnaval, e lembro que ela dizia que foi a festa mais bonita que viu na vida dela”. Mas nem tudo era alegria. Sozinho no Recife, Burach (Bernardo) não deu certo à frente dos negócios e a loja de móveis da família havia quebrado. A família só soube da falência, quando desembarcou na cidade. “Não sei como eles se acertaram, mas papai conseguiu sobreviver”, diz Teté.

Com a família numerosa, Jacob decidiu empreender, virando “prestamista” (que vendia mercadorias de casa em casa). Ele comprava tecidos na Loja Fortunato Russo, no Recife, e ia vendê-los em Jaboatão dos Guararapes e Moreno, então muito “distantes” do centro do Recife. “Ele tomava o trem todos os dias com as mercadorias, e à medida que os fregueses solicitavam, ele ampliava o leque de produtos”, conta. “A freguesia gostava dele”. Com o tempo, o pai de Teté terminou colocando uma loja de móveis, em Jaboatão. Todos os dias, deslocava-se de trem. Tia Teté tem saudades do bairro da Boa Vista dos seus tempos, mais silencioso, mais ventilado, mais residencial , mais seguro, muito bem frequentado. Ela diz que quando passa por ele, hoje, e vê a degradação de ruas que eram tão graciosas e acolhedoras no passado. E aí, não consegue evitar: “Não há como não chorar”, lamenta.

Abaixo, você pode conferir outras informações sobre o Recife do passado, inclusive a presença de Henry Fonda na Praça Maciel Pinheiro, testemunhada por Tia Teté.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos:  Constam de livro de Jacques Ribemboim sobre o Recife . Praça Maciel Pinheiro (década de 1920), Propaganda do Hotel Central (1930), imigrantes judeus não identificados (década de 1930), Rua Barão de São Borja (aquarela da década de 1970, do pintor Villares, repetindo mais ou menos a paisagem do início do século 20); e Acervo #OxeRecife.

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2 comments

  1. Morei no Bairro da Boa Vista 6 anos nos meados dos anos 40 na rua da soledade(final da rua Sao Borja ) e.na Av. Manoel Borba dos 8 aos 14 anos.

    1. Morei na rua Barão de São Borja, quase perto do posto de saúde. Dias desses por curiosidade fui olhar por satélite e a casa que eu morei foi transformada num pequeno comércio de duas portas. Eu tinha uns 13 anos na época, década de 70. Saudades dessa terra querida, meus amigos daí já não estão mais no planeta.

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