Nesta semana, estive a caminhar pelo bairro das Graças e de repente, ao passar pela tradicional e histórica Rua do Cupim, me defronto com uma recordação da infância: a Escolinha de Arte do Recife, um dos locais onde passei os melhores momentos de minha vida de menina. Sim, pois eu adorava pintar – cheguei até a ganhar prêmios – e ali, a cada aula, vivia uma descoberta e soltava as asas da imaginação. Houve até um ano que em um intercâmbio entre dois países, meus desenhos foram parar no exterior. Não lembro se viajaram para o Japão ou para a Holanda. Ou se seguiram para os dois.
Lembro ainda de professora inesquecíveis, como Noêmia Varela e Ana Mae Barbosa. E as aulas – as minhas eram segundas e quartas – eram um verdadeiro bálsamo para a cabecinha. Um espaço relaxante, para uma criança que tinha muita necessidade de atividades lúdicas. Isso porque estas eram poucas ou nenhuma, no colégio que eu estudava, o então Ginásio das Damas da Instrução Cristã. As aulas eram chatas, o ambiente carregado e, ainda por cima, tinha uma professora que eu detestava. Um saco. Lembro-me que no quarto ano primário (naquele tempo era assim denominado o ensino fundamental) ela lia para a turma um livro de capa azul, que tinha um personagem chamado Cedric, que era um chato. E aí, eu ficava sonhando com o desenho que ia fazer na Escolinha para fugir daquela história interminável e insuportável, com que ela costumava preencher os 20 minutos finais do horário das aulas.
Para Cedric, eu queria era o inferno. Na minha cabeça de criança, ele nem devia existir. E olha que eu gostava, e muito, de ler. Mas Cedric era um pesadelo. Que uma bruxa má o levasse para longe. Já a Escolinha de Arte era a sucursal do paraíso. De lá para cá, o colégio de freira deve ter mudado. As educadoras já não usam aquelas roupas pretas temíveis para a nossa infância e que até me lembravam urubus. E as professoras, com certeza, devem ter se modernizado, deixando mais à vontade as crianças do século 21. A escolinha, porém, não sei se é a mesma. Andou em crise, com dificuldade para fechar as contas, no começo do ano. Nesses tempos de pandemia, encontrei fechada a simpática e colorida casinha. Teria entrado se estivesse funcionando. É da época da Escolinha de Arte um dos meus maiores amigos, meu “irmão” Cildo Oliveira, hoje artista plástico consagrado e residindo em São Paulo.
Lembro, também, de dois então garotos e colegas, que pintavam o sete. Eram trelosos e até jogavam areia nos desenhos que nós, alunas e alunos mais quietinhos fazíamos com tanto capricho. Eram Maurício Mota (que às vezes encontro caminhando) e Rodrigo Costa Carvalho (que nunca mais vi). Tirando esses imprevistos, o resto era só prazer. E as professoras não nos impunham temas nem nos obrigavam a desenhar o que elas queriam. Éramos livres. Elas só ensinavam as técnicas. E a gente pintava o desenhava o que queria. O que imaginava. A gente aprendia a usar guache, aquarela, anilina, nanquim. Como fazer desenhos interessantes com lápis de cera, através da chamada técnica cega. Também lembro que, às vezes, coloríamos o papel branco com anilina. Depois, recebíamos água sanitária para desenhar traços brancos sobre o colorido.
A Escolinha de Arte era diversão, descoberta, curiosidade. E liberdade para criar, o que não ocorria no ensino tradicional da época nos colégios. Ao contrário, a criatividade era, sim, reprimida. Anos depois, quando tive minha primeira filha, Joana Carolina – hoje juíza federal – coloquei-a em um outro colégio particular, que não era o Damas. Um dia veio uma tarefa de casa na bolsa. Era desenho pronto para a criança pintar. Na folha mimeografada, tinha escrito: “Desenho Livre”. Lembrei da Escolinha de Arte e do que era realmente um desenho livre. E decidi mudar a menina de escola. Pensei: Se chamam isso de desenho livre, o que será do resto que devem estar a ensinar?
A Escolinha de Arte era tudo! Nunca esqueci das aulas de cerâmica. Era uma delícia manipular a argila, dar-lhe forma. E nunca esqueci como fazer a cabeça de um boneco mamulengo com papel machê. Saudades de Ana Mae, Noêmia Varela (co-fundadora junto com o artista plástico Augusto Rodrigues) e todas as cores do mundo que me foram ofertadas pela Escolinha, instituição de quase 70 anos e pela qual passaram artistas como Gil Vicente, José Patrício e o próprio Cildo. E por onde passaram personalidades pernambucanas como o ex-Governador Eduardo Campos. A EAR surgiu no meio de um movimento em defesa da arte educação nos anos 40 do século passado, que motivou a criação de quase 150 escolinhas de arte em países como Paraguai, Argentina, Portugal e Brasil. Neste, a primeira foi no Rio de Janeiro, que foi fundada em 1948 e que já não mais existe. A segunda, foi a do Recife. E resiste, para contar história. Aos trancos e barrancos, infelizmente.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife