Nos séculos 18 e 19, o Rio Capibaribe atraía famílias abastadas aos bairros mais distantes da cidade. Elas moravam no Centro do Recife. E eram chefiadas por prósperos comerciantes, que moravam em sobrados como os das ruas da Imperatriz e Nova. Eles tinham lojas no andar térreo e residiam nos superiores. Mas nos meses mais quentes, no final do ano, as famílias se transferiam para bairros como o Poço da Panela, onde mantinham casas de veraneio. O rio, então cristalino, era uma atração à parte, onde as pessoas costumavam matar o calor até mesmo em banhos noturnos, costume que perdurou até o início do século 20. Há pessoas mais idosas que, ainda hoje, lembram das areias branquinhas às suas margens, parecendo as de uma praia até os anos 1940.
Infelizmente o tempo foi passando, a cidade cresceu e o Capibaribe começou a ter o seu leito invadido por aterros para a construção de casas, edifícios e até indústrias que inverteram a lógica do passado, relegando o rio a segundo plano. Com o passar das décadas, as construções foram dando as costas ao rio, ao qual restava o fundo dos quintais. Isso aconteceu em vários bairros, como Apipucos, Monteiro, Várzea. No Poço da Panela, não foi diferente. A paisagem que encantou viajantes estrangeiros no passado – como o inglês Henry Koster (em 1778) e Louis François de Tollenare (em 1817) – foi violentada. As antes exuberantes margens do Capibaribe começaram a virar depósitos de lixo. Um exemplo era o terreno de 3 mil metros quadrados, que fica ao final da Rua Marquês de Tamandaré, que havia se transformado local para descarte de metralhas, animais mortos, móveis velhos, carcaças de eletrodomésticos. Mas isso não ficou assim não.
Em 2017, moradores do Poço da Panela decidiram arregaçar as mangas e ocupar o espaço. Partiram para o trabalho braçal mesmo. Mas os entulhos eram tantos, que foi necessário solicitar ajuda à Prefeitura para remoção do lixo. Para se ter uma ideia dos detritos irregularmente acumulados, eles foram suficientes para carregar 15 caminhões da Emlurb. Todos os anos, o Jardim Secreto fazia uma festinha – feira, shows, brincadeiras – para assinalar o aniversário, que ocorre em maio. Os encontros costumam integrar os dois lados do Capibaribe, o que é muito bom. O coletivo que cuida do Jardim Secreto conta com 27 integrantes, sendo que doze atuam mais efetivamente. Há moradores que diariamente vão lá, cuidam das sementeiras, das mudas, da composteiras, molham as plantas. Para quem viu o que o terreno era e em que se transformou, o Jardim Secreto é um exemplo de cidadania. E também de respeito à natureza, motivo pelo qual o #OxeRecife decidiu dedicar-lhe espaço mais uma vez, para assinalar o transcurso da Semana do Meio Ambiente, durante a qual serão mostradas outra experiências, igualmente cidadãs.
“Como é um coletivo, sem nenhuma ambição de formalização, atuando de forma totalmente horizontal, o número de pessoas trabalhando varia muito. Por isso mesmo, considero a experiência incrível. Cada um faz o que gosta e ao mesmo estamos conseguindo manter o Jardim Secreto de Forma harmônica. É, em princípio, uma experiência inovadora”, afirma a arquiteta, urbanista e artista plástica Bárbara Kreuzig, que atua no Coletivo desde o início da implantação do projeto. E que normalmente participa dos mutirões, que ocorrem sempre aos sábados. Depois da mobilização dos moradores, chegou ajuda de órgãos oficiais e da iniciativa privada, pois o JS foi até palco do primeiro “transplante urbano” do Recife,após uma parceria do próprio JS, da Prefeitura e da Casa Cor. Hoje, o que era lixo virou área verde, com gramado, fruteiras, plantas ornamentais, que começam a atrair animais como pássaros, borboletas, saguis e até capivaras.
No JS foram plantados fruteiras: um abacateiro, um jambeiro, três pés de acerola, três ubaias, um pé de graviola, três bananeiras, três laranjeiras, duas amoreiras, um sapotizeiro, uma cajazeira e duas amoreiras. A área ganhou espécies nativas como oito ipês, uma sibipiruna e jacarandá. O Coletivo também recebeu um “ipê”, cujos integrantes descobriram, depois, ser um baobá. Sempre ele, a árvore que, embora exótica (veio da África) mora no coração dos recifenses. E que, com sua magia, até chega em locais para os quais não estava planejada. Bom para o Jardim Secreto, pois o baobá é uma árvore com característica muito especial: é agregadora. O terreno ganhou um gramado, um pequeno palco para eventos e cinco canteiros que são chamados de mandalas, onde são cultivadas plantas ornamentais e hortaliças. Tem plantio de milho, feijão, girassol, coentro, tomate, pimentão. Em uma das mandalas, o Coletivo optou pelo sistema agroflorestal, no qual convivem árvores e hortaliças. Com a iniciativa, o local passou a ser visitado por pessoas de todos os bairros do Recife. Sem pandemia, com certeza, o JS estaria vivendo uma verdadeira festa, para marcar a implantação da iniciativa. A festa vai ficar para depois. Regitre-se que, vez pro outra, infelizmente acontecem percalços: descarte de lixo, furtos, incêndios. Mas o Coletivo Jardim Secreto não desanima. E segue em frente!
Nos links abaixo, você pode conferir mais informações sobre o Jardim Secreto, desde o seu início.
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Texto: Letícia Lins/ #OxeRecife
Fotos: Henrique Santos / Jardim Secreto / Cortesia