Em menos de seis meses, o Recife perdeu dois ícones da cultura pernambucana: o artista Francisco Brennand (1927-2019) e o empresário e colecionador Ricardo Brennand, este falecido na madrugada do sábado (25/4). Francisco foi o criador de uma obra única, a Oficina Francisco Brennand, a sua catedral da arte, como gostava de chamar o complexo que criou em terras do antigo Engenho São João da Várzea,e que foi transformado posteriormente em um museu com exposição permanente em galpões e também a céu aberto. Já o primo, Ricardo, além de empresário de sucesso era um grande colecionador de obras de arte, tendo fundado o Instituto Ricardo Brennand, instituição premiada por entidades internacionais e que abriga a maior coleção particular de obras de Frans Post (1612 – 1680) no mundo.
Post, para os que não lembram, é considerado o primeiro artista a retratar os panoramas das Américas. No Brasil, tornou-se uma fonte importante de consulta para historiadores por ter integrado a comitiva de Maurício de Nassau em sua vinda ao país, no século 17. É a Post que Pernambuco deve muitas de suas imagens da época de ocupação flamenga. Ricardo Brennand foi mais uma vítima da pandemia do Covid-19. E deixa como legado não só uma vida de sucesso como empreendedor (implantou cerca de 20 fábricas), mas também uma incalculável coleção de arte no seu IRB, que foi inaugurado em 2002 e que já foi visitado por mais de 3 milhões de pessoas. É ali, também, que está uma das maiores coleções de armas brancas do mundo, com 5 mil peças. Coleção que Ricardo Brennand deu início ao receber de presente um canivete que lhe fora ofertado pelo tio Ricardo, pai de Francisco. Ele costumava dizer que o nome do IRB era homenagem ao tio e não a ele próprio.
O que mais me recordo da inauguração do IRB foi a exposição dedicada a Albert Eckhout (1610 – 1665), pintor de Maurício de Nassau no Brasil, por um bom período de ocupação flamenga (1637 – 1644). Até então restrito aos livros e às paredes de gabinetes oficiais na Holanda e do Museu na Dinamarca, Eckhout finalmente tornou-se disponível com todo o esplendor de suas obras na primeira exposição organizada para o público pernambucano pelo IRB. Entre os seus quadros mais conhecidos encontram-se a Mameluca (foto vertical), Índio Tupi, Mulato, Negra com Criança, Guerreiro Negro e a Dança dos Tarairiu (também conhecida como a Dança dos Tapuias). Lembro-me de um alto funcionário do governo holandês (não recordo o nome) ter me dito que o IRB resgatara a memória e a importância de Eckhout, artista cujas obras viviam dispersas em paredes de gabinetes oficiais na Europa, sem o devido reconhecimento do valor documental dos quadros que foram reunidos para a exposição no Brasil.
Eckhout também ficou notável pelas naturezas mortas, nas quais retratou frutos nativos (provavelmente extintos) ou totalmente desconhecidos pelas gerações atuais. A última lembrança que tenho de Ricardo Brennand, no entanto, não era a de grande empresário nem do colecionador. Mas do homem comum, fazendo parte de sua feira no Mercado da Madalena, Zona Oeste do Recife. Costumava entrar no mesmo box que frequento há mais de 20 anos, para comprar queijo de coalho, queijo manteiga e carne de sol. Lembro dele quando, ainda sem precisar de cadeiras de rodas, ingressava no box, abria as tampas dos freezers e comprava quantidades grandes de comida.
A sua última visita ao Mercado foi no ano passado, já com dificuldade de locomoção. Chegou com o motorista, aguardou as compras na frente do box e foi cercado por admiradores. Sua presença ali, em lugar tão popular, virou uma festa. “Ele era uma pessoa muito especial, tinha grande coração”, recordam as irmãs Elza e Edileuza (à esquerda), que atendiam aos pedidos do empresário.
“Dr Ricardo comprava muito, levava queijos e carne de sol para todos os filhos e também para os amigos”, recorda Elza. “E costumava separar mercadorias para o motorista”, diz. Mas o que chamava a atenção mesmo, era a forma como ele costumava saborear o queijo manteiga, também chamado de queijo do Sertão. O queijo é tido como dos mais gordurosos, e talvez o consumo exagerado da iguaria no próprio mercado ocorresse por estar longe da observação dos familiares, zelosos provavelmente por sua saúde.
“O falecimento do empresário Ricardo Brennand deixa uma lacuna irreparável na história de Pernambuco. Não apenas pelo seu espírito empreendedor, sempre preocupado com o desenvolvimento econômico do nosso Estado, mas também no âmbito social e cultural. Apaixonado pelas artes, ele nos deixa como legado o instituto que leva seu nome, no bairro da Várzea. O Instituto Ricardo Brennand notabilizou-se internacionalmente e já recebeu mais de três milhões de visitantes desde sua fundação em 2002, promovendo intercâmbios e apoiando escolas públicas e privadas no estudo da história do nosso Estado e do Brasil. Neste momento de profundo pesar, quero externar minha solidariedade a sua esposa D. Graça, aos seus filhos e demais familiares e amigos”, disse, em nota, o Governador Paulo Câmara (PSB). E o Prefeito Geraldo Júlio (PSB decretou luto oficial de três dias.
Boletim divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde informa que os números da Covid em Pernambuco permanecem em ascensão. Agora são oficialmente 4.507 pessoas infectadas, 508 confirmados nas últimas 24 horas. Destes, 275 estão com Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag). E 29 novos óbitos foram confirmados como tendo sido causados pela infecção, conforme exames de laboratório. Com isso, somam 381 as mortes provocadas pela pandemia no Estado.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife e
Fotos: Letícia Lins e Paloma Amorim /IRB/ Divulgação / Acervo #OxeRecife
Exelente artigo, Letícia, como você exalta o homem de grande sensibilidade a culturab e a arte, ao tempo em que a simplisidade de ir ao mercado comprar queijo e outras iguarias.
Obrigada, minha querida amiga e leitora.