Recife, mangue e “aldeões guaiás”

Nós, do Recife, somos todos cidadãos “guaiás”? Sim, somos. Afinal, nossa cidade anfíbia foi construída sobre os mangues. E eles são referenciados na poesia (João Cabral de Melo Neto), em prosa (Josué de Castro), na música (Chico Science, com o seu manguebeat). E também nas Artes Plásticas. Foi só o fato de publicar aqui uma postagem sobre guaiamuns, para ser informada da exposição Enquanto Aldeões Guaiás, que deve ocorrer no Museu do Estado, aqui no Recife. Infelizmente por conta da pandemia, ainda não sabemos quando será.  A mostra reunirá trabalhos em diversos suportes do artista pernambucano Cildo Oliveira, que reside em São Paulo. Mas que tem o Recife e o Rio Capibaribe, sempre, como referências.

E o tema da próxima individual de Cildo (foto) não foge à regra. Afinal, o Recife é filho do mangue. A série é uma releitura plástica a partir de quatro olhares de Josué de Castro sobre o mangue: o mangue como ancestral do Recife, o mangue como fábrica de vida e exemplo de equilíbrio ecológico, o mangue como fonte de conhecimento, e o mangue como lugar dos excluídos sociais. Josué de Castro (1908-1978) foi escritor, médico, político, cientista social e ativista contra a fome.

Josué de Castro escreveu, entre outros livros, Homens e Caranguejos, quando usou a expressão homem-caranguejo, para designar aqueles que habitavam os mangues do Recife (como ocorre ainda hoje, em pleno século 21). O livro teve muita influência em Cildo. Tanto é que 53 anos após sua publicação,o mangue é a principal fonte de inspiração da mostra, que tem curadoria de Beth Araruna.

“Sentimentos negativos, cultivados pelos colonizadores, deixaram marcas que até hoje persistem no imaginário social do recifense”, afirma o artista. “Infelizmente o mangue é sinônimo de zona de prostituição, é lugar a ser poluído com o lixo urbano, além de constituir espaço potencialmente a ser aterrado sob os olhos da especulação imobiliária”, acrescenta Cildo.

Lembra que coube a Josué de Castro retirar o mangue do “mangue” onde se encontrava, atribuindo-lhe a real importância. Cildo resolveu então, recriar a metáfora homem-caranguejo criada por Josué de Castro. “Hoje as questões são outras e universais, há preocupações com o meio ambiente e com o desenvolvimento sustentável”. E complementa: “Somos cidadãos guaiás, conquistamos alguns avanços, mas sempre presos ao ‘mangue’ econômico e social, sem permitir que se dividam as suas riquezas entre nós”. Sob este enfoque, o artista faz sua releitura do tema. E porque aldeões guaiás?

Para chegar ao nome da exposição, Cildo mergulhou na etimologia da palavra guaiamu, guaiamum, goiamu, goiamum. “Derivam do termo tupi waia´um ou guaia-mú, que significa caranguejo escuro azulado. Ou seja, o próprio guaiamum. A pretendida mostra-instalação tem ambiência musical com as obras de Chico Science. O Recife, com seus rios , está sempre presente na obra de Cildo, sejam elas inspiradas assuntos contemporâneos ou de olho no passado.

Tanto é assim, que suas três últimas individuais têm a ver com a nossa cidade assim como o tem, também, Enquanto Cidadãos Guaiás. “Tenho como vetor do meu trabalho o Rio Capibaribe e a cultura indígena brasileira”, diz ao #OxeRecife. Vejam três exemplos: As baronesas tingiram de verde o Capibaribe, Pelas beiras das Aldeias e Em Tempos Januários. A primeira foi uma instalação com recortes de madeira (folhas) pintadas individualmente, lembrando o nosso rio, quando cheio dessa vegetação que, nos séculos passados, eram prenúncio de enchentes vindouras. A segunda é uma resignificação de mapas e documentos dos tempos dos flamengos em Pernambuco. Já Em Tempos Januários, ele recria uma cartografia contemporânea com apropriações de imagens indígenas elaboradas pelos pintores dos tempos de Maurício de Nassau (século 17). Além de quadros e esculturas em diversos suportes,  a mostra instalação Enquanto Aldeões Guaiás terá, também, adesivos, canecas, bolsas, estampas para tecidos, camisetas, etc.

Legal demais! Vamos aguardar!

Veja, na galeria de fotos, alguns dos trabalhos já prontos, para a individual de Cildo:

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Regina Azevedo, Cildo Oliveira (divulgação) e Internet 

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