Os levantes dos camponeses e a triste memória da ditadura em Pernambuco

Tido como um dos movimentos sociais mais fascinantes da história de Pernambuco e alvo de estudos de sociólogos e historiadores, as lutas camponesas vão ficar com documentos mais acessíveis a pesquisadores de todo o mundo. É que cerca de 210 mil imagens relativas à vida dos lavradores e de operários pernambucanos vêm sendo digitalizados pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), e estarão disponíveis no portal Acervo Cepe (www.acervocepe.com.br), ainda em 2020. E não é pouca coisa não, abordando inclusive o período da ditadura implantada no Brasil a partir de 1964. Passa em revista os documentos em questão reforça a memória daqueles tempos sombrios que não nos deixaram saudades, mas que tem gente lá por Brasília sonhando em reeditar.

Os documentos (datados de 1941 a 1985) são tão importantes, que constituem, em sua maior parte, acervo reconhecido como Memória do Mundo, e que foi transformado desde 2012 em Patrimônio da Humanidade pela Unesco. “Isso confirma o seu valor excepcional e o interesse de um acervo documental que deve ser protegido para o benefício da humanidade, um legado do passado para a comunidade mundial do presente e do futuro”, diz Marcília Gama. Ela é Professora de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco, e uma das responsáveis pela seleção do acervo. Os processos foram produzidos pelo Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, onde a historiadora passou uma década como Coordenadora do Núcleo de Gestão Documental e Memória. O conjunto de documentos é o primeiro de um TRT tombado pela Unesco no Brasil. Ao todo, eles somam 1.295 processos.

Como o material é muito vasto, o #OxeRecife vai se limitar hoje aos documentos sobre o campo. Posteriormente voltará ao assunto, reportando-se aos trabalhadores urbanos. Como todos lembram, entre os anos 1950 e 1964, a Zona da Mata – onde se concentra a agroindústria açucareira – viveu em plena ebulição, quando foram criadas as Ligas Camponesas, lideradas por Francisco Julião. E que preconizavam a “A Reforma Agrária, na Lei ou na Marra”. Na época, o trabalhador do corte de cana não tinha nenhum direito trabalhista, e vivia sufocado com práticas patronais que remontavam os tempos da escravidão. A primeira tentativa de dissídio coletivo  para tratar das questões do campo só ocorreria em 1966. Mas foi frustrada.

Ou seja, quando as Ligas Camponesas já tinham sido sufocadas pela ditadura, e os canavieiros tentavam se organizar em sindicatos. O dissídio seria instalado pelo então presidente do TRT-PE, Eurico de Castro Chaves Filho, que foi afastado do cargo pelos representantes da ditadura. Por causa da iniciativa, o juiz – imaginem – foi denunciado e acusado de “corrupção” e “subversão”, conforme lembra a historiadora. “Saiu uma nota num jornal no Rio de Janeiro e depois uma matéria num jornal no Recife, com repercussão enorme”, conta. “O Quarto Exército conduziu um inquérito administrativo e isso resultou no afastamento do juiz, em seguida na aposentadoria compulsória aos 56 anos e, por fim, ele foi proibido de advogar”, recorda. O Quarto Exército à época, é o que é hoje Comando Regional do Exército, com sede no Recife. Naquele tempo, camponês exigir direito era considerado subversão. E Chaves foi punido pelo simples fato de ter ouvido a voz de uma categoria sufocada pelos poderosos de então. (E ainda tem quem diga que não houve ditadura, a partir de 1964…)

Só em 1974, com muita luta o organização dos trabalhadores rurais, voltam a ser abertos dissídios coletivos do homem do campo, ainda em plena ditadura. “Os dissídios de 1974 a 1985, no período militar, mostram o comportamento do TRT e suas relações com os sindicatos na época do regime de exceção”, observa a professora.  Em um desses dissídios, relata,  os lavradores esperaram  15 anos por uma solução. Esse foi o período que o processo passou em tramitação no TRT-PE, Tribunal Superior do Trabalho (TST) e Supremo Tribunal Federal (STF) até a decisão final. Era uma ação movida pela Federação dos Trabalhadores da Agricultores de Pernambuco (Fetape) em defesa de camponeses com doença de Chagas, infecção que provoca inchaço no coração e que leva o paciente à morte. “Por causa da doença, eles não conseguiam cumprir a tarefa diária e como a produção era menor, não recebiam o pagamento”, relata. Ou  seja, trabalho escravo mesmo! “Quando a ação foi concluída, muitos camponeses estavam mortos.”

A história da região canavieira de Pernambuco reflete uma longa tragédia social que, com certeza, esses documentos vão ratificar. Desde criança, ouvia falar nas Ligas Camponesas, cujo noticiário estampado nos jornais me chamava a atenção. Depois, como repórter acompanhei alguns processos sobre o assunto na Auditoria Militar do Recife, durante a ditadura. Curiosa, pedia aos militares para xerocar algum material, a pretexto da necessidade para produção de textos no Jornal do Brasil, onde trabalhava. Foi assim que li, pela primeira vez, os cordéis Bença, Mãe, nos quais Julião preconizava a “reforma agrária, na lei ou na marra”, em atitude considerada incendiária pelas forças conservadoras de então.

Em 1979 – ainda na vigência da ditadura – cobri a primeira greve de canavieiros pós 1964. Era uma categoria muito forte, com 240 mil trabalhadores inscritos na Fetape.  Foi um movimento bem organizado e que, apesar da legislação draconiana de então contra a realização de greve, os cortadores de cana conseguiram cumprir todos os rituais exigidos pela lei, não dando chance aos tribunais de decretar “ilegalidade” do movimento pretendida pelo patronato. Muitas outras greves se seguiram, com exigências tão elementares quanto o direito de acesso  à água potável no local de trabalho e o transporte seguro entre os engenhos. Nessa época a violência contra os trabalhadores que exigiam direitos trabalhistas nos canaviais era tão grande, que levou a Fetape a produzir um documento chamado Açúcar com Gosto de Sangue. O relatório foi enviado para instituições de defesa dos direitos humanos no Brasil e no exterior. Lembro-me também que a censura imposta  pelos militares nos impediam de usar o nome camponês na produção de textos para o jornal. Camponês era lembrança de “subversão” e nós, repórteres, tínhamos que usar outra nomenclatura: “rurícola”. Eu ficava revoltada. Toda vez, escrevia camponês, e levava uma bronca do editor, na época o saudoso Juarez Bahia, já falecido e um dos meus mestres no jornalismo. Mas eu insistia. Um dia, passou. E eu comemorei a vitória do drible. Desde então, a palavra “rurícola” saiu do meu dicionário por ser uma amarga lembrança da ditadura e eu passei a usar a palavra “camponês” nas matéria sobre mobilização no campo com uma sensação vitoriosa. Pode?

O convênio entre a Cepe e o TRT-PE para digitalização de processos trabalhistas que cobrem o período de 1941 até 2013 teve início há um ano e meio. Nesse período, foram reproduzidas 110 mil imagens de um total de 210 mil selecionadas pelo Tribunal. “A primeira fase, com dissídios coletivos de 1974 a 1989, está pronta e nossa previsão era fazer o lançamento no portal em abril, tivemos de suspender por causa da pandemia”, informa o superintendente do Departamento de Digitalização, Gestão e Guarda de Documentos da Cepe, Igor Burgos. Na segunda etapa serão digitalizados os 100 mil documentos restantes, diz ele. O www.acervocepe.com.br é acessível em computador, tablet e smartphone.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Acervo Cepe

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