Trabalhava no Jornal do Brasil, quando o saudoso e querido amigo Francisco Bandeira de Melo me chamou para um programa que me pareceu fascinante. Percorrer o Rio Capibaribe, ao lado de quem mais ele inspirou: o poeta João Cabral de Melo Neto, autor de “Morte e Vida Severina”, “O Cão Sem Plumas”, “Vale do Capibaribe” e tantos outros que falam do nosso tão castigado patrimônio, que resiste, firme, a todo tipo de agressão, ainda hoje. O roteiro do passeio fluvial foi por ali “No Recife pitoresco/ Sentimental, histórico,/ De Apipucos e do Monteiro/ Do Poço da Panela,/ Da Casa Forte e do Caldereiro,/ Onde há poças de tempo/ Estagnadas sob as Mangueiras”.
A primeira constatação foi que a cultura do rio Capibaribe não havia se acabado: areeiros, vacarias, olarias, barqueiros, pescadores e catadores de caranguejos sobreviviam às suas margens. Como permanecem, ainda hoje. Isso, em fevereiro de 1984. A segunda, que oitizeiros, coqueiros, mangueiras, cajueiros, sapotizeiros pontilhavam a paisagem, muitas das quais estão lá, 32 anos depois. Conversei muito com o poeta, que apesar da fama de não ter bom humor, foi atencioso, didático, sincero. Era um ouvido no que ele dizia, e um olho na paisagem linda dos velhos bairros do Recife, a partir do leito do rio. Alguns meses antes, havia assistido um documentário sobre Cabral, com gravações entre o Recife e em Sevilha, na Espanha, onde ele residiu um longo tempo. No filme, vi uma paisagem linda. Ao visitar Sevilha, como turista, peguei um barco e naveguei pelo Rio Guadalquivir, na esperança de ver, ao vivo, aquelas imagens tão bonitas, retratadas no filme, com velhos casarões e escadarias que davam para o Rio. Pois nesse dia, 22 de fevereiro de 1984, descobri que o passeio em terras espanholas fora em vão. A paisagem, linda que eu vira, era aqui mesmo, pertinho de minha casa: no Recife.

Quando Cabral faleceu, em já trabalhava no jornal “O Globo”, como correspondente no Nordeste. E ao escrever sobre “O Recife de Cabral”, o passeio ao lado do poeta foi fundamental, para que eu produzisse o texto, que passeava pelos seus versos e também pelas curvas sinuosas do Capibaribe. Reconstruí, na memória, o percurso ao lado do poeta, um dos meus ídolos, desde os tempos de adolescência. Naquela época, fazíamos jograis no Colégio Vera Cruz, baseados nas estrofes de Morte e Vida. Olhem só o que ele disse, durante o passeio: “Vejam essa arborização peculiar. Quando vinha ao Recife, de outras vezes, andava pelas ruas e não pelo rio. Das ruas, não se vê esses fundos de quintais. Daqui (do meio do rio) é que realmente se observa o Recife. Visto do Capibaribe, a capital está muito bem conservada. A paisagem verde é praticamente a mesma do passado”, dizia. Hoje, com certeza, com os espigões que invadiram a beira do Rio, Cabral não pudesse dizer o mesmo. Passamos pela Torre, Casa Forte, Cordeiro, Caxangá, Poço da Panela, Monteiro e Apipucos, àquela época todos ainda muito verdes.
Ele mantinha, também, esperança de que o Projeto Capibaribe, que começou a ser implantado pelo então Prefeito Joaquim Francisco, trouxesse benefícios para o “cão sem plumas” e para as comunidades ribeirinhas. Orçado, na época, em CR$ 100 bilhões (não sei converter para reais), o trabalho pretendia preservar 246 hectares de terras localizadas às margens do Rio. Metade seria destinada à plantação de pomares e jardins, tal qual se pensa hoje, com a implantação do Parque Capibaribe. “Com essa obra fantástica que a Prefeitura está fazendo, o recifense, enfim, vai conviver com o rio, com o qual ele convive atualmente, apenas através dos recifenses. O Capibaribe não se afastou do recifense. Este é que se afastou do rio”, concluiu nosso poeta. Hoje, qual é o recifense que não sonha com um rio de águas limpas, com margens arborizadas e floridas, e pontos de convivência ao lado do Capibaribe? Pena que apesar de tantos programas governamentais, o rio permanece o mesmo: agredido, poluído, servindo de esgoto a céu aberto e lixão. #OxeRecife, sinceramente. Precisamos de águas limpas na nossa vida….
(Fotos: Letícia Lins / #OxeRecife)