O “Morcego Cego” de Gilvan Lemos

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Tímido, muito introspectivo, voz mansa, porém um grande leitor e um escritor ainda maior. Meu pai, Osman Lins, tinha o maior respeito pela obra literária de Gilvan Lemos. Não sou crítica, mas sou leitora, e também gosto de ler o autor pernambucano, com o qual aprendi a conviver, ainda nos tempos de criança. Ele frequentava a nossa família, no bairro de Casa Amarela, onde aos sábados meu pai costumava jogar volibol com os amigos. Naquele tempo, os quintais eram tão grandes que no nosso tinha até uma quadra, demarcada com cimento. Eu e minhas irmãs colocávamos cadeirinhas ao lado da quadra, para assistirmos ao jogo. Só não consigo lembrar de Gilvan também jogava. Mas que ele estava sempre presente, aos sábados, sim, estava.

Gilvan aproximou-se do meu pai, por conta de uma colega de trabalho, Beatriz, minha saudosa tia Bituza, que era irmã de minha mãe. Ambos trabalhavam em uma repartição, se não me engano chamada IAPI, que hoje não sei se seria o INSS ou uma espécie de SUS da época.  Depois de partidas esportivas sem fim, fomos morar em São Paulo, onde meus pais se separaram. Só fui, então, voltar a conviver com Gilvan já adulta, quando ele ia diariamente à Livro 7, costumando ficar por longas tardes sentado nos bancos da calçada da livraria.

A Livro 7 ficava na Rua 7 de Setembro. Ali, o autor encontrava os amigos, escritores como ele. Agora o pernambucano entra em evidência, seis anos após a sua morte.  É que a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) está relançando o livro Morcego Cego, de Gilvan, 33 anos após sua publicação. O lançamento da nova edição ocorre no canal da Cepe no YouTube, às 19h da sexta (9/7).

Apesar de sua simplicidade e  do excesso de timidez  (hesitava até em procurar editoras do Sul para sua obra),  Gilvan era considerado um mestre da moderna ficção brasileira. Chegou a ser comparado a Dostoiévski por Hermilo Borba Filho. E é visto como “renovador da Literatura Brasileira” pelo poeta, ensaísta e crítico Mário da Silva Brito. Ou seja, Gilvan Lemos é nome referencial da literatura pernambucana, com vasta obra (entre romances, contos e novelas) publicada e premiada. Faleceu no dia 1º de agosto de 2015, aos 87 anos. Lembro-me dos rasgados elogios que meu pai fazia à obra de Gilvan, quando conversávamos. Recordo, também, que ele citava timidez do amigo como um fator responsável por ele não ser tão conhecido quanto merecia, no Brasil.

Recordo, também, que ele chegou a apresentar a obra de Gilvan Lemos a alguns editores de São Paulo (não lembro mais quais livros nem que editores). Quando eu ia a São Paulo, ele indagava. “Tem visto Gilvan? Seus livros são muito bons”. A live de lançamento contará com a participação de Lívia Valença, sobrinha de Gilvan Lemos e responsável pelo Espaço Cultural Escritor Gilvan Lemos, em São Bento do Una; do pesquisador e escritor Pedro Américo de Farias, que manteve com Gilvan uma longa amizade; e, na mediação, o jornalista Thiago Corrêa, autor da  biografia Gilvan Lemos: o último capítulo, publicada pela Cepe Editora em 2017.

Originalmente lançado em 1998, Morcego Cego é considerado um dos mais densos romances publicados por Gilvan. O escritor ficou famoso pela força narrativa, refinamento linguístico, esmero na construção psicológica dos personagens e crítico da desigualdade  social. A trama da obra gira em torno de Juliano, que de menino criado em situação de miséria. Mas que torna-se um homem ambicioso, marcado pelo ódio e desprezo, atormentado por seu passado e seus dramas interiores. No livro, escrito há três décadas, algumas cenas urbanas parecem muito atuais, pela paisagem, pela falta de civilidade, pela omissão do serviço público, pelos vazamentos nas ruas, pelo asfalto desgastado e em buracos.

A rua suburbana se estende num corredor formado pelos pés de acácias – belos, nesta época do ano – mas o calçamento da rua se acaba pouco a pouco, sem a providência da prefeitura, o cuidado em restaurá-lo. Um carro passa e mais adiante estremece sobre a poça de água, os pneus provocam inesperados respingos de lama. Ainda não fecharam aquele buraco, o maior, o que acumula água, oriunda do eterno vazamento da casa nº 341, com sério problema na encanação. Nas calçadas de ambos os lados a fileira de sacos de lixo, alguns rasgados pelos cachorros, azuis, cor-de-rosa, todos rodeados de moscas, expelindo mau cheiro. O caminhão do lixo ainda não passou.

Em Morcego Cego, rompendo com a estética linear, o autor mescla simultaneamente os tempos da narrativa, identificados pelas primeiras letras do alfabeto a cada abertura de capítulo. Os iniciados pela letra A resgatam a infância pobre e os segredos sobre a origem de Juliano. Os de letra B, conduzem à sua vida na criminalidade e as  relações que o personagem constrói sempre pautadas pelo interesse; nos capítulos em C, o protagonista divaga sobre sucessos e declínio. Memórias costuradas ao longo do livro em diálogos entre Juliano e o narrador, apenas revelado no final. “Gilvan incorporou o azar no seu discurso de escritor, reclamando que sua obra nunca havia tido o reconhecimento devido, ainda que ele tenha conseguido produzir e publicar dezenas de livros, alguns dos quais pelas principais editoras do país, conquistado prêmios, recebido atenção da imprensa e da crítica. Nesse sentido, Morcego Cego talvez tenha sido o último lampejo desse desejo de consagração por parte de Gilvan, sendo publicado pela Record e lançado no Recife com pompa, num evento no Teatro Apolo. Em termos literários, o livro apresenta um certo amadurecimento na prosa de Gilvan, que se vale de recursos técnicos para contar a história de Juliano”, destaca Thiago Corrêa. Por iniciativa da Cepe Editora, a obra literária de Gilvan Lemos, boa parte já fora do catálogo, vem sendo reeditada, o que permite aos leitores acesso ao seu universo ficcional do escritor.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Divulgação / Cepe

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