Vou tomar emprestado o grito de guerra do Grupo Marsenal: “ocupar, gritar, se levantar”. O Marsenal, como vocês sabem, faz teatro de resistência no Recife. E e eu estou roubando o slogan para definir o que aconteceu hoje na nossa cidade, quando centenas de pessoas protestaram contra a censura, em frente à Caixa Cultural, ali no Marco Zero. É que nesta semana, o Grupo Clowns de Shakespeare (RN) foi impedido de levar ali o belo espetáculo Abrazo, o que terminou motivando um mutirão que permitiu uma apresentação gratuita na tarde desse sábado. A encenação ocorreu no Teatro Apolo, cedido pela Secretaria de Cultura do Recife. Os ingressos foram distribuídos gratuitamente, e os atores passaram o chapéu ao final do espetáculo. A solidariedade foi tão grande, que teve gente que se emocionou e até chorou. No palco e na plateia.
Para o grupo, o feitiço está virando contra o feiticeiro. Porque a censura terminou despertando a curiosidade do público, que lotou aquela tradicional casa de espetáculos. A peça é baseada no Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano (1940-2015), o escritor uruguaio que soube como ninguém contar a história da América Latina pela ótica dos oprimidos, dos despossuídos, de negros, de índios e perseguidos políticos. No Livro dos Abraços, Galeano aborda – em 111 pequenos capítulos – temas como o exílio, a alienação, a “máquina de retroceder”, a fome, as ditaduras, os sonhos, o adeus aos sonhos. E Abrazo fala de tudo isso. Mas sobretudo do cerceamento da liberdade. Só que contextualizando as situações descritas por Galeano no momento tão difícil vivido atualmente pela cultura no Brasil, com imposição de censura inclusive à produção de filmes, a livros didáticos e até mesmo aos gibis. Na peça, não há diálogos, os personagens representam por mímicas reforçadas por fundo musical que vai das marchas militares a Gracias a La Vida.
Não peguei ingresso, porque cheguei tarde. É que os bilhetes voaram. Mas encontrei o amigo Caio Fábio (do Mão Molenga Teatro de Bonecos e do Coletivo Angu de Teatro), que me cedeu um. Ainda bem. Porque o espetáculo é lindo, lindo, lindo. Imperdível mesmo. Todo mundo aplaudiu de pé. E o mais importante: embora seja baseado no livro de Galeano, escrito nos anos 1980, Abrazo remete o espectador a uma reflexão sobre Brasil de hoje: militares no poder, a questão do armamento, a ameaça aos direitos indígenas, a devastação das florestas, as limitações à liberdade de expressão, os retrocessos em tantas conquistas.
O grupo veio fazer apresentações na Caixa Cultural do Recife, o braço cultural da Caixa Econômica Federal. Mas antes da segunda encenação prevista, foi informado que estava proibido de se apresentar de novo, por “quebra de contrato”, até hoje não totalmente esclarecido pela Cef. O fato é que a censura terminou levando centenas de pessoas às ruas, na tarde de hoje para um protesto contra a medida totalmente incompatível com a realidade um país supostamente democrático. A manifestação ocorreu em frente à Cef, de onde saiu um cortejo puxado pelo Maracatu Brincante Popular, pelo Boi Marinho e o Som da Rural até o Teatro Apolo. Sinceramente, contra a censura, o “pool” foi lindo: a Secretaria de Cultura do Recife cedeu o palco do Teatro Apolo para o o grupo se apresentar. A produtora Paula de Renor também abriu mão do horário que tinha reservado naquela casa para um outro espetáculo. Grupos culturais saíram às ruas para o protesto. Pessoas do Recife abriram suas residências para hospedar os atores, já que a Cef impôs um prejuízo financeiro aos Clowns. E o público prestigiou a apresentação que foi encerrada, claro, em clima de protesto e até com gritos “Lula Livre”. O caso está na Justiça. E o pessoal de teatro do país está se articulando para fazer reunião em Brasília a fim de discutir problemas como esses, cada dia mais corriqueiros na vida cultural do país. Sinceramente, #CensuraNuncaMais. É isso que todos nós queremos!
Veja vídeo do protesto contra a censura à peça Abrazo:
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Texto, foto e vídeo: Letícia Lins / #OxeRecife