As mangas que deveriam ser do povo

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No Sertão – onde são cultivadas em larga escala, no Vale do São Francisco – elas estão se acabando debaixo d´água devido ao inverno atípico e antecipado. E a chuva foi tanta, que até as exportações serão prejudicadas. Naquela região, os produtores já contabilizam perdas de 10 mil toneladas, com prejuízos estimados em R$ 27 milhões. Porém no Recife,  onde o sol brilha intenso desde setembro, a temporada de mangas (rosa ou espada) está em plena safra, e o fruto fibroso serve não só de alimento como também vira ganha pão para muita gente.

Na Capital, a oferta é tanta que manga não tem dono. É uma instituição pública. Pela manhã, em bairros como os da Zona Norte – onde resido – é comum observar-se dezenas de duplas, na caça às frutas. Um, empurra um carrinho de mão. O outro, leva a vara com um saco para colher as mais maduras (antes que caiam e se espatifem no solo). Depois, ganham as ruas vendendo a fruta, por preços mais acessíveis do que os praticados nos supermercados.  E voltam para casa com o carrinho vazio e com os bolsos  se não cheios, pelo menos, aliviados. Há, também, aqueles que colhem as caídas no chão e já vão matando a fome no caminho de ida ou volta.

Mangas estão apodrecendo aos montes no campus da UFRPE, no bairro de Dois Irmãos: acesso vetado à população.

A cena é vista em praças, em quintais, em jardins públicos ou privados. E são tantas, que ninguém faz questão. Manga não tem dono no Recife. É do povo. É tradição, o democrático acesso a elas. E por ser tão rica em fibras, minerais e vitaminas, a fruta é disputadíssima. Pois forra muito bem o estômago, mata a fome, nesses tempos de crescimento da pobreza. Até mesmo em condomínios fechados, basta ter um galho dando para a rua, para que a árvore se torne alvo da população. E ninguém reclama. Pois as mangueiras ficam carregadas e a produção é tão generosa, que normalmente nem vigias de praças nem segurança de condomínios impedem a ação dos “invasores”.  A manga é de todos. No sítio que fica ao lado da minha casa, nesta semana foi retirado um carregamento que encheu um carrinho de supermercado. O sítio pertence à Igreja Católica e sempre tem gente da comunidade colhendo os frutos, que são comercializados em uma barraquinha defronte do Açude de Apipucos, sob a sombra de uma outra… mangueira.

Mas há um lugar que não é assim tão democrático. Infelizmente uma área pública.   É a Universidade Federal Rural de Pernambuco, no bairro de Dois Irmãos. Moradores de áreas vizinhas – Sítio dos Pintos, Córrego da Fortuna,  São Braz –  reclamam que o acesso foi fechado a populares, e que as mangas estão apodrecendo no campus.  “Soube que há uma ordem proibindo a coleta de mangas, o que é um absurdo, pois elas poderiam servir para orfanatos, asilos e mesmo para a própria população, que tem um grande contingente passado fome”, conta um morador de Sítio dos Pintos, desempregado.

Ele contou que um galho que dava para a rua, no qual populares costumavam colher as frutas com uma vara, foi podado. Aparentemente para proibir o acesso aos frutos. Ninguém sabe de onde partiu a determinação, vetando o acesso da comunidade às fruteiras. O #OxeRecife esteve na UFRPE e constatou que os portões estão realmente fechados. O único aberto ao público é aquele quase defronte ao Parque Estadual de Dois Irmãos, onde há um posto de vacinação contra a Covid-19.  Também foi feita ligação para a assessoria de comunicação da UFRPE, para saber se há alguma proibição quanto à colheita das mangas.

Mas não o telefone não atendeu, apesar do excesso de tentativas. Lembrei, então, de uma velha pesquisa sobre a fome feita no Recife no século passado, pelos pesquisadores Clóvis Cavalcanti e Parry Scott. Eles mostravam que um bom  percentual da população do Recife dormia com a incerteza do que teria para comer na manhã seguinte. Aquilo que hoje chamamos de “insegurança alimentar”. Eles diziam que a fome só não era maior devido às fruteiras que restavam em quintais, sítios e praças da cidade.  Na semana passada, o servidor público aposentado Carlos Alberto Alves da Silva esteve na UFRPE. Ele tem permissão para entrar, porque sua mãe – viúva de ex-servidor da Universidade –  reside no campus há mais de 60 anos. E ele foi visitá-la.

Ficou impressionando com a quantidade de mangas caídas no chão e que iriam para o lixo. Preocupado com o desperdício, apanhou tudo. Em poucos minutos, encheu dois carros de mão com as frutas (foto superior, maior). Eram tantas, que resolveu  ensacá-las e distribuir a moradores em situação de rua que vivem em tendas ou marquises na Rua do Imperador, no Centro do Recife. Não conseguiu chegar lá. Na primeira parada, em frente ao Liceu de Artes e Ofícios, ali ao lado do Teatro Santa Isabel,  no mesmo bairro de Santo Antônio, os famintos avançaram e levaram tudo. Em instantes. Moral da história: Ao invés de ir para o lixo, o excedente de frutos da UFRPE poderia estar alimentando centenas de famílias. Porque gente com fome é mato.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
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