Livro mostra que São José tem “mais permanência do que descaracterização”

Pensem em um lugar rico, cheio de igrejas seculares, becos, velhos telhados, outrora ocupado por violeiros e cantadores, por poetas de cordel, principalmente em torno do seu mercado público, o mais antigo erguido em ferro ainda em funcionamento no Brasil. Muitos dos seus tipos populares – como os fotógrafos lambe-lambe – e ambulantes folclóricos (como Cariri) que tomavam a Praça Dom Vital ficaram na memória dos mais velhos ou dos livros que, felizmente nos brindam com a magia do que é, ainda hoje, o nosso bairro de São José. Berço de agremiações carnavalescas (Batutas de São José, Galo da Madrugada) e palco de eventos tradicionais do nosso carnaval – como o Baile Perfumado e a Noite dos Tambores Silenciosos – o bairro é, também, o São José das procissões religiosas, e de templos católicos como as igrejas da  Penha, de Santa Rita, de São José do Ribamar, a Matriz de São José, a Concatedral de São Pedro dos Clérigos, a Igreja do Livramento, a Igreja do Terço. E também o São José dos pátios, como o de São Pedro, o do Livramento, o do Terço.

É, talvez, o pedaço do centro do Recife onde esteja o mais efervescente comércio de rua. Ao contrário do que ocorre com outros bairros – como Boa Vista e Santo Antônio – onde a decadência do comércio é uma realidade, no de São José ele se mantém “pulsante” com “ruas sempre cheias”, como lembra a arquiteta Juliana Melo Pereira, Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco. Para ressaltar sua importância e desvendar as perspectivas de futuro, será lançado na terça-feira (21/09) o livro São José: Olhares e Vozes em Confronto. Um bairro patrimônio cultural do Recife. A publicação é da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). Organizado por um quarteto de peso – Virgína Pontual, Renata Cabral, Juliana Melo Pereira e Flaviana Lira – o livro faz uma radiografia daquele que é um dos bairros mais tradicionais a cidade (e infelizmente esquecido pelo nosso poder público).

“É preciso entender o que as pessoas reconhecem e valorizam nesse lugar. A relação entre o que destrói e o que faz o bairro viver é muito tênue, isso vai além das modificações das fachadas”, diz Juliana. “São José é único, é uma unidade cultural material e imaterial”, destaca Virgínia Pontual, uma das organizadoras da publicação, que entra em discussão na abertura do 5º Seminário Urbanismo e Patrimônio Cultural, que começa amanhã (21/09). O debate sobre o livro e o bairro ficará por conta de José Lira (FAU-USP) e Rodrigo Farias (UnB). O Seminário será virtual, via plataforma Zoom. São José ocupa uma área de 3,26 quilômetros quadrados e era habitado por 8.688 pessoas em 2010, de acordo com o último censo do IBGE. Os números são os mesmos que ainda constam no site oficial da Prefeitura do Recife.

O livro reúne oito artigos de arquitetas e urbanistas que pesquisaram esse trecho da cidade nos mínimos detalhes e podem afirmar que, sim, São José tem vida própria.  Por exemplo, “ele não é dependente do bairro de Santo Antônio”, como diz Renata Cabral.

O #OxeRecife lamenta, no entanto, que ao longo dos anos o bairro venha sofrendo com o avanço de espigões – como as torres gêmeas – e projetos imobiliários como o que ocupará o Cais José Estelita. Também sofre pela omissão da Prefeitura (que permite reformas não compatíveis com as fachadas seculares do seu casario), porém os especialistas constatam que ainda há muito o que se preservar. “O discurso da descaracterização serve para legitimar um potencial de destruição no bairro”, adverte a arquiteta e urbanista Virgínia Pontual, professora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. Tomara que as autoridades e a sociedade entendam isso e lutem pela preservação daquele bairro tão importante na nossa história e na paisagem do Recife.

A publicação nos brinda com informações preciosas. Por exemplo, no artigo São José em três panoramas: F. Hagedorn (C.1855), A. Ducasble (1889) e J. Rodrigues (2014)  as arquitetas Fátima Barreto Campello e Isabela Duarte Dutra comparam imagens do século 19 com foto do século 21, obtidas de um mesmo ponto. E concluem que São José, visto de cima, tem mais “permanência” do que descaracterização. Segundo elas, São José é descaracterizado quando observado no nível das fachadas do casario, porém, apesar das transformações na paisagem, mantém muita integridade. Como exemplo, Maria de Fátima e Isabela citam o trecho em volta da Igreja de Nossa Senhora do Livramento e da  Basílica da Penha, no qual é possível reconhecer o ontem e o hoje, mesmo com as mudanças. “A escala acolhedora do bairro permanece, cortado pela verticalidade das torres das igrejas”, relatam.

Virgínia Pontual, no artigo Fragmentos de representações sobre a formação urbana do Recife e do bairro de São José do século 16 ao 21, informa que a predominância de casas térreas é um sinal de que o lugar era habitado por classes sociais distintas e não apenas por pessoas menos abastadas, como sempre se divulga. No século 19, diz ela, “São José era um bairro com mesclagem urbanística, arquitetônica e social”, mesmo que lotes e ruas fossem mais estreitos do que os de Santo Antônio.  A professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro Cêça Guimaraens escreveu sobre o bairro tendo como ponto de partida imagens do fotógrafo e intelectual pernambucano Benício Dias (1914-1976), que documentou as transformações no centro histórico do Recife da década de 1930 até os anos 1970.

Ele deixou registros de becos, como o do Marroquim. E  também de figuras que frequentavam o Mercado de São José, como o mascate Cariri (que deu origem a uma troça de Carnaval em Olinda), de anônimos e de paisagens que contam a história de São José. (A Cepe lançou em 2015 o livro Benício Dias – Fotografias, com parte desse acervo). Virgínia Pontual e Renata Cabral lembram que  a ideia do livro surgiu por volta de 2014-2015.  Na época, havia uma grande  mobilização da sociedade civil, que deu origem ao movimento Ocupe Estelita, para tentar impedir a derrubada de antigos armazéns no Cais José Estelita, para posterior implantação de um empreendimento imobiliário de luxo no local.

O projeto está em fase de implantação, mas não da forma que foi concebido. Por conta da pressão da sociedade, ele sofreu várias modificações. Renata e Virgínia dizem que a especulação imobiliária e a mobilização do Ocupe Estelita chamaram atenção da sociedade para São José. E mostraram, também, o amor que o recifense tem ao bairro. Arquitetas e urbanistas da UFPE decidiram estudar mais o bairro em transformação e as mudanças que interferiam em seu passado recente.

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Serviço
O quê: Lançamento do livro São José: Olhares e Vozes em Confronto – Um Bairro Patrimônio Cultural do Recife
Quando: 21 de setembro

Hora: 14h às 16h num debate com os arquitetos José Lira (professor da FAU-USP e prefaciador do livro) e Rodrigo Farias (UnB)
Local: 5º Seminário Urbanismo e Patrimônio Cultural (canal do YouTube LUP-UFPE)
Preço do livro: R$ 90 (impresso) e R$ 27 (e-book)
Onde comprar: Lojas físicas e loja virtual da Cepe (www.cepe.com.br/lojacepe/)

Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotografias: Fotos antigas de Benício Dias e Acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj)

 

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