Sempre gostei do artesanato, dos folhetos de cordel, dos cantadores. Mas se houve um desses artistas que muito me encantava, era justamente José Francisco Borges, o J.Borges, um dos maiores ícones da cultura popular do Brasil. E, também, uma grande figura humana, que não se recusava a repassar às novas gerações todos os segredos do seu ofício. Nem a repetir a sua longa história a todos aqueles que o procuravam para conhecer de perto esse gênio da xilogravura. E, saber também, dos versos de cordel onde, aliás, ele aprendeu praticamente sozinho a ler. Para tristeza de Pernambuco, do Brasil, do mundo, o artista “viajou” nessa sexta-feira (26/7) e deve estar passeando pelo céu, ao lado de figuras que compunham o seu mundo mágico e encantado.
Antes de se consolidar como aquele que Ariano Suassuna (1927-2014) dizia ser o maior gravador popular do planeta, J.Borges fez de tudo um pouco. Trabalhou na roça com o pai, ainda criança. E foi marceneiro, carpinteiro, balconista, pedreiro, oleiro, artesão. Fazia brinquedos populares, balaios e até colher de pau para vender nas feiras. Mas o que gostava mesmo, era de ver os violeiros e cantadores, à época muito comuns nas cidades e sítios do interior. Logo, se apaixonaria pelo cordel, através dos quais aprenderia a ler. “ Do que eu sei, 70 por cento aprendi no Cordel”, conta. Começou então a deslanchar no verso. Mas como não tinha dinheiro para pagar pela ilustrações, ele mesmo entalhava as madeiras para fazer suas próprias xilogravuras, chegando a ilustrar as capas de nada menos de 316 cordéis, alguns dos quais viraram best-sellers, como “A mulher que vendeu o cabelo e chegou ao inferno bebendo chumbo derretido”.
O cordel sobre o assunto surgiu em uma época em que as mulheres tinham as economias domésticas arrasadas pela seca, e vendiam as longas cabeleiras nas feiras, para que virassem perucas. Indignado com aquele tipo de comércio, ele escreveu o cordel que vendeu como banana na feira, e terminou provocando reação nas mulheres do interior, que pararam de vender os cabelos. O trabalho de J.Borges não encanta só os leitores do interior. Mas também intelectuais do mundo e até mesmo da Academia.
Em 1993, J.Borges foi convocado pelo saudoso escritor Eduardo Galeano (1940-2015), para ilustrar o livro “As palavras andantes”, publicado no Brasil pela L&PM. Suas xilogravuras ilustraram o conto “O Lagarto”, de José Saramago. E em 2012, foi o artista escolhido para ilustrar a edição brasileira de Contos maravilhosos infantis e domésticos, dos Irmãos Grimm, em dois volumes. Os livros comemoravam os 200 anos da primeira edição dos famosos escritores. A essa repórter aqui – à época trabalhando no Jornal “O Globo”, do Rio – disse não ter enfrentando nenhuma dificuldade, para ilustrar livros de autores, culturas e épocas tão distantes, quanto Galeano e os Irmãos Grimm.
“Tudo que tem no conto de fada, tem no cordel: passarinho, mulher, calúnia, inveja, rei, bruxa, rainha. O fantástico que o conto de fada explora, o cordel também sabe explorar”, disse-me, em uma longa entrevista sobre a sua vida e seu ofício. Apesar de ser uma pessoa muito simples, J.Borges reconhecia o seu valor:
“O meu nome é hoje muito falado, mas não chega a um quarto do que vai ser depois de mim”.

J. Borges já expôs na Suíça, nos Estados Unidos, no México, França, Venezuela, Cuba. Em alguns desses países, realizou oficinas sobre a sua arte de entalhar na madeira. Nos últimos anos foi alvo de exposições no Recife (Fundação Joaquim Nabuco, Cais do Sertão e galerias particulares). Também lançou álbuns inéditos e, em 2023, foi o tema do Calendário da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), disputado por colecionadores antes mesmo do seu encantamento, que ocorreu na manhã dessa sexta-feira triste, de causas naturais.
Ele nasceu no dia 20 de dezembro de 1935, no município de Bezerros, onde construiu seu castelo, sua obra mágica e definitiva. Bezerros fica no Agreste, a 107 quilômetros do Recife. O Governo de Pernambuco e a Prefeitura do Recife distribuíram notas de pesar. A exposição mais recente sobre o artista pernambucano “J.Borges, o Sol do Sertão“, ocupa o Museu do Pontal, na Barra, no Rio de Janeiro.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Divulgação / Acervo #OxeRecife
Sensível seu texto sobre nosso J. Borges que hoje se encantou e virou estrela do céu. Em São Paulo, o Itau Cultural inaugurou no último final de semana exposiçao do gênio pernambucano. Em 2022 foi a vez da Fiesp ocupar um andar inteiro do seu chamativo prédio com gravuras, folhetos e histórias daquele que como ele mesmo disse e você transcreveu, será muito mais falado pós morte. À época eu visitava São Paulo e passei horas vendo os trabalhos e lendo aspectos da vida do artista que partiu mas ficou.