Em Salvador, os povos dos terreiros têm várias manifestações em comum com Igreja Católica. A missa afro-baiana ( conhecida como a Terça da Bênção) no Pelourinho, por exemplo, virou uma instituição e uma atração turística, que a cada terça-feira recebe maior número de pessoas. Lá, eu cheguei bem cedinho porque, caso contrário, ficaria em pé durante toda a liturgia. Nela, os cantos tradicionais da Santa Madre se misturam com o rufar dos tambores do candomblé e as referências aos orixás, em sadio e respeitável sincretismo.
Em Pernambuco – onde a relação entre terreiros e igreja católica não é tão intensa quanto na Bahia – acontece uma curiosidade: é cada dia mais íntima, a relação de agremiações carnavalescas com as instituições religiosas. Logo essas manifestações do carnaval, tida como a mais profana de todas as festas. Em Olinda, os dirigentes de agremiações carnavalescas são os mesmos que lideram irmandades da Igreja Católica. São eles, inclusive, que carregam bandeiras e andores nas procissões pelas ladeiras da cidade histórica, durante a Quaresma, logo após recolhidas as fantasias. No último sábado, o Homem da Meia Noite subiu o Morro da Conceição, no Recife, para reverenciar Nossa Senhora e também Yemanjá, a quem ela corresponde no sincretismo religioso. O Morro, que fica no populoso bairro de Casa Amarela, é hoje um dos mais importantes santuários de Pernambuco. Foi uma festa de muita paz, com presença do profano (clima de carnaval) e do sagrado, este representado através da santa e do orixá (que têm datas diferentes de comemoração em 8 de dezembro e 2 de fevereiro, respectivamente). A roupa do calunga, inclusive, fazia referência às duas divindades.
Todos os anos, o Bloco da Saudade recebe a bênção dos monges do Mosteiro de São Bento, em Olinda, cerimônia que virou tradição do carnaval da cidade histórica. No Recife, a concentração para o desfile carnavalesco da agremiação é sempre em frente à Igreja Matriz da Boa Vista. Na última quinta-feira, a Igreja das Fronteiras foi toda tomada pelo Bloco Lírico Artesãos de Pernambuco, entoando frevos como Madeira que Cupim não rói. Domingo passado, um templo barroco, no caso a Igreja Madre Deus, abriu as portas para abrigar o Bloco das Flores, com sua maravilhosa Orquestra de Pau e Corda (como vocês sabem, os blocos líricos usam instrumentos como flautas, violões, violinos, bandolins). O templo fica no Bairro do Recife. Foi a primeira edição do ano do Projeto Música na Igreja, que acontece mensalmente, sempre com repertório erudito (ou tratamento erudito à música popular). O Projeto é uma das iniciativas órgãos públicos do Recife, e pelo qual tenho o maior respeito.
O espaço onde o público assiste às missas terminou virando um salão de festa. A orquestra contagiou os presentes e, ao final da apresentação, o Bloco puxou a plateia para o meio da rua. Foi muito lindo. O bloco, para os que não sabem, é o mais antigo do Recife (fundado em 1920). E agora, uma sugestão do #OxeRecife: por que o Música na Igreja não fica semanal até o carnaval? Seria uma boa oportunidade para que turistas e os próprios pernambucanos se divertissem, aprendendo mais sobre o romântico repertório de frevos de bloco, já que o Recife é a capital brasileira onde essa tradição é a mais vicejante. A orquestra executou canções próprias da agremiação. E também clássicos do frevo de bloco, como a Marcha da Folia (1924), e Madeira que Cupim Não Rói (1926) e O Último Regresso (1982), entre outros 18 sucessos carnavalescos. Cerca de 200 pessoas prestigiaram o evento. Bem que poderia ter sido muito mais.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Foto: Andrea Rego Barros/ Divulgação/ PCR