Severino Cavalcanti e a história que faltou contar

Representante do chamado baixo clero que surpreendeu o país ao ser escolhido para presidir a Cãmara dos Deputados, em Brasília, o ex-Deputado Severino Cavalcanti morreu na madrugada de hoje, em seu apartamento, na praia de Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Foi vítima de complicações provocadas pela diabetes e uma fratura no fêmur. Tinha 89 anos e o sepultamento será  às 15h, no município de João Alfredo, onde mantinha boa parte do seu reduto eleitoral. A história política de Severino Cavalcanti – ex Arena, ex PDS e ex PDC – todo mundo conhece. Foi deputado estadual por quatro mandatos consecutivos, passando 28 anos na Assembléia Legislativa, onde deu suporte ao governo da ditadura nos anos 1960 e 1980. Depois, elegeu-se por três vezes como deputado federal, até que em 2005 seria eleito para presidir a Câmara Federal, renunciando pouco depois ao mandato, quando foi envolvido no chamado Escândalo do Mensalinho.

Com política na veia, Severino voltaria à sua terra, para se eleger Prefeito de João Alfredo, município localizado a 106 quilômetros do Recife e para o qual ele sonhava com a instalação de um polo industrial, que multiplicasse as oportunidades de emprego na Região Agreste. Os olhos chegavam a brilhar, quando falava no assunto. Certa vez fui entrevistá-lo, como candidato a Prefeito, e ele me levou ao terreno onde ficaria o polo industrial da cidade. A ênfase era para o setor moveleiro, que ele considerava ser a região vocacionada para tal. Como cidadã, eu não tinha nenhuma identidade com as posições políticas de Severino Cavalcanti, com o qual mantinha relações profissionais – eu como repórter e ele como politico – marcadas por respeito mútuo. Ele nunca me telefonou para se queixar de alguma matéria que lhe fosse desfavorável, coisa comum em certos políticos do nosso estado.

Ele nunca o fez, nem quando eu trabalhava no Jornal do Brasil nem em O Globo, no qual passei 23 anos, como correspondente. Em parte desse período, Severino passou a ser motivo de chacota pela imprensa nacional,  pelo seu jeitão espontâneo e matutão,  e pelo fato de ter chegado à Presidência da Câmara, em Brasília, mesmo sendo do chamado “baixo clero”. Dei uma olhada nos seus perfis na Internet. Não vi nenhum que falasse na primeira vez ele ocupou manchetes na Imprensa Nacional. E foi graças a essa repórter que vos fala. Em 1980, a Assembléia Legislativa de Pernambuco tinha um peso político tão grande, que o repórter “setorista” de política que lá não fosse, por apenas um dia, corria o risco de levar um “furo”. E eu ia diariamente e dava alguns furos na concorrência. E Severino foi personagem de um deles.

Uma bela tarde, encontro o deputado estadual  na tribuna da Assembleia. Ele exigia que o então Presidente, General João Baptista Figueiredo, expulsasse do Brasil o Padre Vitor Miracapillo, italiano que comandava a Paróquia de Ribeirão, na Zona da Mata de Pernambuco, região marcada por convulsão social, provocada pela fome. Severino invocava o uso Estatuto do Estrangeiro, peça draconiana que havia sido sancionada um dia antes pelo General. Ou seja, o Estatuto era invocado pela primeira vez. Severino acusava o padre de antipatriótico e subversivo, por se negar a rezar missa da independência, para assinalar o 7 de Setembro. Voltei correndo à sucursal do JB,  e telefonei para o padre. E religioso  me confirmou sua decisão. “Me recuso a rezar a missa, porque no Brasil o povo não tem independência. Comemorar o quê, no 7 de Setembro?”.

O assunto foi machete do JB no dia seguinte. Pronto, a confusão estava feita. Desrespeito aos símbolos da Pátria, naquele tempo implicava em enquadramento na Lei de Segurança Nacional, exemplo do sacerdote italiano que, segundo o mesmo Estatuto, não podia ter posição politica em terra estrangeira. No caso, o Brasil. A confusão serviu para tornar ainda mais tensas as relações entre Igreja e Estado, que eram muito complicadas naquela época, inclusive com perseguição a padres estrangeiros e ao próprio Arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, cuja simples citação do seu nome era vedado aos órgãos de imprensa.. O padre terminou sendo expulso, motivo pelo qual, durante muito tempo, Severino ganhou o apelido de “Severino Miracapillo”. E hoje ainda tem Presidente do país, dizendo que o Brasil nuncq teve ditadura. O Governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB) e o Prefeito do Recife, Geraldo Júlio (PSB) divulgaram nota de pesar. Não haverá velório do corpo do ex-deputado, devido à pandemia.

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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Foto: Internet

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