Está certo que, no Ceará, a intenção é a melhor possível: evitar a discriminação racial, social e religiosa. Mas hoje é carnaval, e todo mundo cai no clima. Pelo menos aqui em Pernambuco, onde fantasia tem de tudo. E livre. Sábado mesmo, passou um “batalhão do Bope” no meio da Troça Nóis Sofre Mais Nóis Goza, e os foliões até pensaram que eram militares de verdade. No Recife, não faltam índios, árabes, ciganas, freiras e padres, santos, pais de santo, e orixás (Iemanjá, a mais comum). Homens vestidos de mulheres há, em todas as esquinas. Aliás, isso ocorre em qualquer carnaval, seja no Rio de Janeiro, Salvador, Recife.
Todas aquelas fantasias fazem do carnaval de Pernambuco uma festa alegre, divertida e colorida, com todo mundo levando a brincadeira na esportiva. Até porque carnaval é assim. Ontem vi uma moça muito alva, com uma cabeleira black power dançando abraçada com o namorado, que era negro. Os dois, na maior felicidade. Será que a peruca tinha alguma manifestação de racismo? Sei não… No Ceará, a Defensoria Pública recomendou aos foliões que não usassem elementos indígenas nas fantasias, nem alusivos à raça negra, à religião nem à diversidade sexual. Mas o que são as fantasias, senão uma recriação da realidade?
“Etnia não é fantasia”, diz a recomendação, referindo-se a “índios e ciganos”. E explica: “Penas, cocares e pinturas corporais são elementos da cultura dos povos indígenas. Não são adereços de carnaval. O mesmo deve-se ao povo cigano, onde as vestimentas dizem respeito às identidades e tradições culturais”, ressaltam postagens divulgadas em Fortaleza, nas redes sociais. “Resumir uma etnia a enfeite é jogar confete para reforçar estereótipos e marginalizar novamente a história e a cultura”. Será? O que dizer, então das tribos de índios e caboclinhos do Recife que usam tangas e cocares? E das pinturas tribais da Timbalada, em Salvador? A Defensoria afirma que “Identidade não é fantasia”, referindo-se a “homens vestidos de mulher’. E dá o motivo: “Tem mulher cis e trans, travesti, gend fluid e queer. O mundo das identidades é vasto e certeiro: não é fantasia, é realidade”. Em Pernambuco, não sei realmente como isso seria. E as Virgens de Olinda, como ficariam? São homens que, no carnaval, vão às ruas com as roupas de suas mães, filhas, namoradas. Tudo não passa de uma brincadeira, mas que atrai cerca de 300 mil pessoas ao desfile.
A Defensoria também recomenda que ninguém use fantasias com referências religiosas. Nem padre, nem muçulmano, nem santo ou orixá. “Religião não é fantasia”. Nessa terça, no Rio de Janeiro, ganha as ruas o Bloco das Carmelitas, com foliãs vestindo traes religiosas. E o que se vê de diabinhos e anjinhos no desfile do Galo da Madrugada, no Recife, não dá nem para contar. E padres, freiras, pais de santo, árabes (muçulmanos), e iemanjás? Ninguém reclama, porque tudo é fantasia carnavalesca. Pelo menos no espírito democrático, livre e sadio da festa no Recife e em outras cidades, como Olinda, Rio, Salvador. E o que diria a Defensoria Pública do Ceará, diante da Escola de Samba Unidos da Tijuca, do Rio de Janeiro, que levou para o sambódromo fantasias de ciganos, santos (Nossa Senhora, Santa Sara, Jesus, Santo Antônio, São Pedro)? Tinha até fantasia do Sagrado Coração de Jesus. E da Salgueiro, que levou Xangô para a avenida? “Somos diferentes até mesmo na forma de crer. E isso não é brincadeira”, afirma a Defensoria, recomendando que os símbolos religiosos não sejam usados no carnaval.
É verdade que somos diferentes, sim, mas em Pernambuco as religiões de origem afro estão ligadas aos afoxés, aos maracatus, que representam simplesmente a identidade negra. Com as respectivas fantasias e com muito respeito e até exaltação à cultura afro. Não é por carregar o pálio do rei e da rainha do maracatu, que o personagem vai estar se sentindo um escravo. E tem branco fantasiado de sobra desfilando nos cortejos que lembram os ancestrais negros, usando, claro, as indumentárias que os representam. No Recife, fantasias são encaradas com espírito esportivo no carnaval. Caso adotasse a recomendação do Ceará, o calunga do Homem da Meia Noite – o boneco gigante mais famoso de Pernambuco – não teria usado este ano um paletó com as pinturas de Nossa Senhora da Conceição e Iemanjá. Católicos e terreiros aplaudiram a fantasia. Sinceramente, não vi nenhum desrespeito nisso. Mas sim respeito à fé e ao sincretismo religioso.
A Defensoria Pública do Ceará orienta para que os foliões abandonem a peruca black power ou o black face. “Usar a imagem de mulher negra ou homem negro não é piada, é agressão”. Concordo que o racismo tem mais é que ser evitado, mas será que usar uma peruca de cabelos pretos encaracolados no carnaval é racismo? Porque peruca tem de toda cor: preta, amarela, vermelha. Para mim, o folião ou foliã que usa uma peruca dessas cores é porque incorporou a fantasia de ser negro, loiro ou ruivo um dia. Vi muitos brancos com perucas de cachos negros, como muitas negras de perucas lisas e loiras no Carnaval. E, cá para nós, não apareceu nenhum folião para reclamar de preconceito racial. Afinal, carnaval é carnaval. Em Pernambuco, campanha contra excessos, houve. Mas contra a bebedeira, o sexo desprotegido, a violência e também contra o assédio sexual. Então, ficamos assim. E viva o carnaval!
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Agenda do carnaval: 28 de fevereiro
Texto e fotos: Letícia Lins / #OxeRecife
Acredito que “normalizar” o racismo só por ser carnaval (e, portanto, tudo pode) é um tremendo erro. Se branco quisesse realmente ser negro ( englobando a parte onde a polícia sempre suspeita, onde você não é aceito porque seu cabelo não é adequado a política da empresa, ou o estupro e desemprego que é infinitamente maior entre a população negra) abriria mão do seu privilégio. Mas o mesmo branco que coloca blackface e peruca pra se “sentir negro por um dia (parece programa do Faustão, que ridículo) é exatamente a pessoa que diz que cota é injusto e não consegue nem se da conta (porque olha apenas para o seu umbigo) que o Brasil é racista e possui diferenças gritantes impostas as populações negras desde SEMPRE. Então sim a campanha do Ceará é legitima. Carnaval é para se divertir e não para usar o outro ( a dita minoria muitas vezes preterida e marginalizada) apenas pra sair bem na foto.