Dizia o saudoso Geneton Moraes Neto que “produzir memórias é uma das (poucas) coisas realmente úteis que o jornalismo pode fazer”. E é mesmo. As notícias são factuais, se perdem no passar dos dias, às vezes em minutos, mas ao longo das décadas e dos séculos, elas viram história. Faço essas colocações porque estava em casa, lendo meus livrinhos, quando o telefone toca. Do outro lado, uma voz masculina. Era Reinaldo Soares, um sertanejo da cidade de Salgueiro – bisneto de padre e neto de “coronel” – que queria resgatar uma polêmica história de família. Mas precisamente a de Antônia Soares Leitinho, a Dona Totonha, cuja vida daria um livro. Ou mesmo um bom filme. Daqueles que mostram o Nordeste arcaico, profundo e com leis de eficácia duvidosa nos sertões onde quem mandava eram os chamados “coronéis”.
Tudo porque ele leu uma reportagem “Matriarcas Nordestinas”, que eu escrevera em 1994 para o jornal “O Globo”, mostrando a saga de mulheres guerreiras da caatinga que iam de personagens fictícias como Maria Moura (de Rachel de Queiroz) a figuras reais, como Dona Totonha, que teve o marido assassinado ao final do século 19. Revoltada com a inércia da polícia, Totonha decidiu: “Só choro e boto luto depois de matar os assassinos do marido”. E assim foi feito. Os assassinos foram abatidos, um a um, tiveram as orelhas ressecadas ao sol e colocadas em uma caixinha que ela carregava (como troféu) amarrada na cintura. Dizem até que Totonha teria feito um rosário, para rezar pela alma do marido, utilizando o terço com restos mortais dos matadores.
Perseguida pela polícia – que nada tinha feito para prender os algozes do marido – Totonha não teve outra alternativa. Após fazer justiça a seu modo, passou a vida fugindo em lombo de jumento, na companhia de um sobrinho, para não ser presa. Andou pelas estradas poeirentas da caatinga em Pernambuco, Piauí, Paraíba e Ceará. Prescrita a pena, voltou para o Sertão de Pernambuco, onde impôs rigoroso silêncio sobre a sua ação, e dirigiu com mão de ferro negócios e destinos da família. O segredo imposto aos descendentes terminou deixando alguns buracos em sua história.
A sua trajetória havia sido resgatada na reportagem por mim publicada em 1994, após entrevistar a amiga Luzilá Gonçalves Ferreira, especialista em costumes femininos do século 19, que tem vários trabalhos e livros publicados sobre o assunto. Tão logo Reinaldo me telefonou, marquei um encontro com Luzilá, que noo recebeu em sua casa, no Poço da Panela (foto acima, em que aparece, também, essa escriba aqui). De acordo com o que apurou Luzilá, Totonha fez um travesseiro e o recheou “com a terra onde meu marido viveu”. Em sua longa viagem, não teve dificuldade para ser abrigada e escondida. “Ela dizia ser de família importante, era bem recebida e ajudada”, recorda a escritora. “Essa história de Totonha, a família já sabia. Tenho um tia já falecida, Maria do Socorro Soares Bezerra, que chegou a ver essa caixinha (a das orelhas ressecadas). Mas os demais detalhes são apenas fragmentos, que eu gostaria de costurar”, diz Reinaldo, que recorda que “esse fato era tratado como um tabu” pela família. Afinal, os detalhes parecem bem sórdidos e deviam envergonhar mesmo o então poderoso clã sertanejo. Reinaldo é neto de um padre, Antônio Joaquim Soares cujo retrato lembra de ter visto na casa do seu avô, Veremundo Soares, na cidade de Salgueiro (a 518 quilômetros do Recife). Veremundo foi o último representante do coronelismo político em Pernambuco e era tido como o homem mais rico do Sertão do Estado, nos anos 1950. Quando o padre faleceu – depois de vários casos amorosos – Veremundo tinha apenas quatro anos.
O padre nasceu em Mariana (MG), e ninguém sabe o motivo que o levou, em 1836, a empreender uma viagem saindo de Pirapora (MG) até o Sertão de Pernambuco, vindo pelo Rio São Francisco. Veio com uma irmão viúva, Alaíde Soares Leitinho, que se estabeleceu em Jatobá, município próximo a Tacaratu (a 450 quilômetros do Recife). O padre foi morar em Salgueiro em 1841, comprou pelo menos cinco fazendas, e cinco anos depois assumiria a Paróquia da então daquela recém criada Vila. O que não o impediu de ter vivido com várias mulheres e deixado uma prole numerosa.
Mas mesmo após conversar com Luzilá, Reinaldo não conseguiu – ainda – costurar a história completa da matriarca, embora tenha certeza que “a família que ficou em Jabotá deve ter dado origem a Totonha”. É que há alguns pontos obscuros na vida de Totonha, e não restam documentos a seu respeito. Seria ela filha de Alaíde, a irmã viúva do padre mulherengo? Sua saga, no entanto, está viva não só na memória dos descendentes como entre os moradores de Salgueiro. Assim como a movimentada vida amorosa do Padre, cuja quantidade de filhos é difícil precisar. Veremundo, por exemplo, é o quarto fruto de união marital do Padre com a filha da primeira mulher do sacerdote, Marcolina. TTive alguns problemas na produção dessa reportagem. Tudo porque tentei alguma empresa que fizesse a digitalização e redução do tamanho das folhas de jornal, para que eu as pudesse aqui publicar. Me foi informado que apenas duas copiadoras faziam esse serviço no Recife, diante do tamanho (32cm X 56cm) do jornal impresso.
Fui à primeira indicada, no Rosarinho, mas estava em reforma. A segunda, na Boa Vista, prestou um péssimo serviço. Prometeu entrega em um horário, não o fez. Como demorava muito a fazer a entrega, pediu meu ZAP para enviar por telefone. Quando enviou o arquivo foi em uma resolução tão absurda, mas tão absurda – muito maior do que o solicitado – que eu não conseguia nem abrir nem baixar. Foi muito vai e vem, até que me enviaram só a metade do que fora entregue para digitalizar (um das duas páginas). Faltou, por exemplo, a página da reportagem completa, que teve chamada de primeira página, no Caderno Ela, do Jornal O Globo, onde eu na época trabalhava. A reportagem teve o título “Versões de Maria Moura em carne e osso”. Sou apaixonada por esse romance de Rachel de Queiroz (1910-2003) e pela personagem agreste e valente que ela criou, e decidi investigar e na vida real havia outras marias mouras, como a retratada pela escritora cearense.
Sim, havia. E Luzilá e Rachel foram as principais fontes para a produção da reportagem. Rachel terminou se tornando uma amiga querida, e com a qual estive pelo menos três vezes em Fortaleza e em Quixadá, na sua fazenda “Não me deixes“, onde costumava escrever seus livros. Peço, portanto, perdão a Reinaldo e a Luzilá, por toda essa demora, diante de um serviço pago mas inconcluso por parte da copiadora, cujo nome me nego a dizer, mas que teria feito um elogio público se o serviço tivesse sido efetivado conforme o prometido.
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Texto: Letícia Lins / #OxeRecife
Fotos: Acervo #OxeRecife
Que história intrigante e delirante!Realmente daria um filme forte ,cujo enredo,apesar dos “detalhes sórdidos” da macabra missão,
revelaria a vida no sertão nordestino dominado pelos “coronéis”donos da lei.
E da valentia de uma mulher que resolveu fazer justiça com as próprias mãos…
Eita nordestina poderosa,vingativa e corajosa!
Muito interessante essa história Letícia! Também sou fascinado por essas histórias desses bravos sertanejos e sertanejas que povoam o nosso imaginário! Parabéns amiga pelo brilhante texto e vou esperar ancioso por mais histórias de Dona Totonha e outras!