Para quem assistiu “Retratos Fantasmas”, a caminhada do Grupo Bora Preservar do último domingo, pelas ruas do Recife, foi muito oportuna. Porém ela já estava planejada há um tempão, bem antes do filme do pernambucano Kleber Mendonça pipocar nas telas do cinema de todo o país. É que o tema do passeio a pé pelo centro da cidade foi bem nostálgico, passando pelos locais dos antigos cinemas do Centro, alguns que nem foram abordados no imperdível longa metragem do mesmo diretor de “O Som ao Redor”, “Aquarius” ,“Bacurau”.
O percurso começou em frente ao Teatro Santa Isabel, inaugurado em 1850, e uma das pérolas históricas da arquitetura no Recife. De acordo com o nosso guia, Emanoel Correia, o TSI também chegou a ser usado como cinema, nos anos 30 do século passado, porém houve pressão da sociedade aristocrática da época, que considerava o teatro muito especial e exigia que o TSI não fosse usado para fins “tão populares”. Saindo da Praça da República, caminhamos até o bairro de São José, onde fica o único cinema em estilo art nouveau do Recife: o Cinema Glória (1926), que fica na Praça Dom Vital e cujo nome “Cinema” não está mais na fachada. Foi substituído por “Galeria”, já que virou um ponto comercial.
Exceto as portas – que seguem o horroroso modelo adotado pelas lojas do centro – o Cinema Glória conserva a fachada original. Mas o seu interior mudou. É hoje uma galeria de lojinhas de produtos chineses, no bairro de São José, o único do centro do Recife onde o comércio popular ainda tem efervescência. De lá, andamos até o Pátio do Terço, onde ficava o extinto Cinema Ideal (1915), provavelmente frequentado pelos moradores das redondezas, quando as ruas daquele trecho de São José ainda eram residenciais. Depois, passagem pela Avenida Dantas Barreto, onde no passado funcionou o Cinema AIP (1958), que só exibia filmes de arte e que terminou sendo considerado “subversivo” pelo governo militar, segundo Emanoel. O seu diretor, o jornalista Carlos Garcia, chegou a ser preso nos anos 1970.
De lá, sob o bonito toque dos sinos da Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, chegamos à Rua Nova, a mais sofisticada do Centro do Recife até meados do século passado, e que fica no bairro de Santo Antônio. Foi aí que funcionou o primeiro cinema do Recife, o Pathé (1909) que, no mesmo ano de sua fundação, ganharia um vizinho concorrente: o Royal, que sobreviveu até 1954. Daí, seguimos para o extinto Art Palácio, na Rua da Palma, que surgiu nos anos 1930, tendo funcionando até o final dos anos 1980.
Ainda passamos pela antiga sede do Trianon (na Avenida Guararapes), que foi fundado na década de 1960. E também pela loja sem graça que funciona na antiga sede do Moderno (na Praça Joaquim Nabuco), no mesmo bairro do Pathé. O Moderno, segundo o levantamento do nosso guia, é bem mais antigo do que o Trianon, pois foi fundado em 1915. No filme Retratos Fantasmas, Kleber mostra como esses três cinemas “dialogavam” com o São Luiz (inaugurado em 1952). Hoje, todos estão fechados, inclusive o último que, segundo o governo de Pernambuco, está em “obras e será entregue em 2024”. Será?
Tive que sair mais cedo e não pude ficar até o final da caminhada. Mas o grupo ainda passou pelos extintos cinemas Veneza (Rua do Hospício), fundado em 1970 . Também abordou os cinemas mais recentes, o Astor e Ritz (na Avenida Visconde Suassuna), que no período de decadência viraram cinemas do filmes pornô, e até chegaram a usar os palcos para espetáculos do tipo. Houve ainda passagem pelo inesquecível Cine Boa Vista, na Rua Bom Bosco, próximo à Praça Chora Menino. No melhor estilo Cinema Paradiso (Lembram desse belo filme italiano?), as cadeiras tinham assento e encosto de madeira, as portas não fechavam na hora da projeção (para não fazer muito calor) e ele tinha até um jardinzinho (como o Teatro do Parque), para o qual iam os espectadores quando queriam fumar um cigarrinho.
Quanta saudade dos cinemas da nossa cidade! E quanta saudade do Recife com os seus cinemas. Hoje, tudo é fantasma no centro, não só os seus cinemas como o Recife que se foi e nada tem a ver com a cidade que se dizia “pequena porém decente”, em meados do século passado.
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Texto e fotos: Letícia Lins / #OxeRecife